[BNP/E3, 103 – 35-39]
NOVA POESIA PORTUGUESA NO SEU ASPECTO PSICOLÓGICO.
(Conclusão).
VI
Na classificação dos sistemas filosóficos temos a considerar duas coisas: a constituição do espírito e os fins a que tende na sua actividade metafísica.
O espírito humano, por sua própria natureza de duplamente – interiormente e exteriormente – percipiente, nunca pode pensar senão em termos de um dualismo qualquer; mesmo que se esforce por chegar, e até certo ponto chegue, a uma concepção altamente monística, dentro dessa concepção monística há um dualismo. Mesmo que dos dois elementos constitutivos da Experiência – matéria e espírito – se negue a realidade a um, não se lhe nega a existência como irrealidade, como aparência – o que transforma o dualismo espírito-matéria em dualismo realidade-aparência; mas realidade-aparência é, para o espírito, um dualismo.
O género de dualismo, porém, depende de, é condicionado por, o que se considera a Realidade Absoluta, a realidade realmente real; e é a procura dessa realidade que é o fim da especulação metafísica. O espírito não pode admitir duas realidades absolutas: a ideia de realidade absoluta envolve a ideia de unidade. Mesmo, portanto, que o espírito admita, como em alguns sistemas – e flagrantemente no espiritualismo clássico — acontece, dois princípios com igual objectividade reais, é forçado a admitir que o género de realidade de um desses princípios é superior ao da do outro.
Temos, pois, que todo o sistema filosófico envolve um dualismo e um monismo. A constituição do espírito impõe-lhe, por mais que ele lhe queira fugir, que pense dualisticamente; a noção de realidade obriga-o a pensar monisticamente. O espírito não pode construir um sistema pura- e integralmente monístico; e um sistema puramente dualístico não seria um sistema filosófico.
Todo o sistema filosófico sendo, portanto, a tentativa para reduzir a um monismo o dualismo essencial do nosso espírito, é de subentender que represente uma sistematização de elementos da Experiência em torno àquela parte da Experiência – matéria ou espírito — que o filósofo, por razões que, em sua essência, são de temperamento, considera a Realidade. Temos pois que, consoante para o filósofo o espírito ou a matéria se apresenta como a realidade essencial, um de dois sistemas pode directamente surgir – o espiritualismo ou o materialismo. – Para o materialista a forma essencial de realidade, seja ela especializadamente qual for no seu especial sistema, é sempre uma realidade de que forma parte inalienavelmente um elemento ou espacial, ou, pelo menos, de inconsciência. — Para o espiritualista, através das várias formas que pode tomar o espiritualismo, há sempre de central e essencial um elemento, o elemento consciência, que é o que o espírito imediatamente concebe como sua base própria. Daqui partem todas as teorias características do espiritualismo – a imortalidade da alma (concebida impossibilidade de anular a consciência), o livre-arbítrio (concebida superioridade do cons-
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ciente sobre o inconsciente) e a existência de um Deus clara- ou obscuramente tido como pessoal, isto é, como consciente.
A ideação metafísica pode, porém, tentar monismo de outro modo mais queridamente absoluto. Não há, é certo, outros elementos da Experiência que não a matéria e o espírito; o pensamento, porém, de certo modo tenta suprimir este dualismo. E de três modos o pode fazer: 1.° Negando toda a realidade objectiva a um dos elementos da Experiência, isto é (consoante já passim vimos), reduzindo o dualismo ao minimamente dualístico (ainda que impossivelmente de todo monístico) dualismo de realidade-aparência. Conforme é o espírito ou a matéria o elemento eliminado temos o materialismo absoluto ou o espiritualismo absoluto. – 2.° Admitindo a realidade igual de ambos os elementos da Experiência; ora como isto resulta num absurdo de sistema – dado que a existência de duas, iguais, realidades é impensável –, fatalmente essa dupla realidade tira o seu carácter de realidade de ser, basilarmente, a dupla manifestação de qualquer coisa em sua essência tida por nem matéria nem espírito, ainda que somente existente e real naquelas suas duas manifestações. Se essa substância as transcendesse, isto é, fosse outra coisa, existisse à parte da sua manifestação através de matéria e espírito, estaríamos então piorados para três realidades. – 3.° Negando a realidade a ambos elementos da Experiência, considerando-os apenas como a manifestação, não real mas ilusória, não única mas alguma, de uma transcendente e verdadeira e só realidade. – Temos assim, além dos citados materialismo e espiritualismo absolutos, no segundo sistema citado o panteísmo, e no terceiro o transcendentalismo.
O leitor reparou que no primeiro género de sistemas acima expostos há duas formas – uma materialista, outra espiritualista. O mesmo acontece ao panteísmo e ao transcendentalismo. É que, por mais que abstractamente ideemos, realmente não temos outros modelos por onde idear senão espírito e matéria. Mesmo portanto que concebamos um Transcendente, inconscientemente e involuntariamente o teremos de conceber como feito à imagem da matéria ou à semelhança do espírito. Assim, temos um panteísmo materialista e um panteísmo espiritualista. O primeiro – o de Spinoza – é o que enterra o que Spinoza, não se sabe porquê, chama Deus, nos seus atributos. Estes são como que o corpo de Deus, mas para além desse corpo Deus não é nada. É só o corpo de si próprio. Vê-se que o modelo é materialista; tanto quanto um panteísmo pode ser materialista, é-o o sistema de Spinoza. — O panteísmo espiritualista admite Deus substância de tudo, mas permanecendo Deus e diverso através da sua manifestação por seus atributos. Faça-se uma distinção subtil, que tem de ser subtilmente compreendida: para o panteísta materialista tudo é Deus; para o panteísta espiritualista Deus é tudo. Se houvesse sido pensado coerentemente, e despidamente de influências de estreita teologia, teria sido este o sistema de Malebranche.
Com o transcendentalismo acontece o mesmo. Importa fixar bem a diferença entre o panteísmo e o transcendentalismo, tanto mais que estabelecemos nós estes termos independentemente de como tenham sido usados antes, assim como, de resto, fazemos esta classificação de modo absolutamente original. – Para o panteísta de qualquer das duas espécies, matéria e espírito são manifestações reais de Deus, exista ele (panteísmo espiritualista) ou não (panteísmo materialista) como Deus além das suas duas manifestações.
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Para o transcendentalista, matéria e espírito são manifestações irreais de Deus, ou, antes, para não errarmos, do Transcendente, o Transcendente manifestando-se como a ilusão, o sonho de si próprio. - Dos transcendentalistas, para o transcendentalista materialista (Schopenhauer), a essência real, de que as coisas são a ilusão, é qualquer coisa vaga cujo carácter essencial é ser inconsciente; ora, como a consciência é a base dos sistemas espiritualistas, temos aqui um sistema que, apesar de transcendentalista, o é anti-espiritualistica-, isto é, materialisticamente. – É escusado definir o transcendentalismo espiritualista, que representa a hipótese contrária.
Um outro sistema pode, porém, surgir, limite e cúpula da metafísica. Suponha-se que a um transcendentalista qualquer esta objecção se faz: O Aparente (matéria e espírito) é para vós irreal, é uma manifestação irreal do Real. Como, porém, pode o Real manifestar-se irrealmente? Para que o irreal seja irreal é preciso que seja real: portanto o Aparente é uma realidade irreal, ou uma irrealidade real – uma contradição realizada. O Transcendente pois é e não é ao mesmo tempo, existe à parte e não-à parte da sua manifestação, é real e não-real nessa manifestação. – Vê-se que este sistema é, não o materialismo nem o espiritualismo, mas sim o panteísmo transcendentalizado: chamemos-lhe pois o transcendentalismo panteísta. Há dele um exemplo único e eterno. É essa catedral do pensamento – a filosofia de Hegel.
O transcendentalismo panteísta envolve e transcende todos os sistemas: matéria e espírito são para ele reais e irreais ao mesmo tempo, Deus e não-Deus essencialmente. Tão verdade é dizer que a matéria e o espírito existem como que não existem, porque existem e não existem ao mesmo tempo. A suprema verdade que se pode dizer de uma coisa é que ele é e não é ao mesmo tempo. Por isso pois que a essência do universo é a contradição – a irrealização do Real, que é a mesma coisa que a realização do Irreal –, uma afirmação é tanto mais verdadeira quanto maior contradição envolve. Dizer que a matéria é material e o espírito, espiritual não é falso; mas é mais verdade dizer que a matéria é espiritual e o espírito material. E assim, complexa- e indefinidamente.
Se um pouco nos alongámos na exposição do transcendentalismo panteísta, breve se verá que tínhamos razões para isso. De resto, o leitor que tenha bem em mente a orientação do nosso raciocínio e os característicos, ainda que superficialmente lembrados da nossa nova poesia, deve já suspeitar a que vem esta menos breve exposição no meio de umas breves considerações.
Posto isto, passemos a considerar qual a metafísica dos dois grandes períodos literários da Europa.
VII
Ao passar à análise da filosofia dos dois grandes períodos literários da Europa e perscrutação de qual a linha evolutiva dessa filosofia, importa, antes de tudo, distinguir entre a “filosofia” pensamento individual e a “filosofia” sentimento poético. – Tanto a filosofia do filósofo como a do poeta são questões de temperamento, mas ao passo que o temperamento do filósofo é intelectual, o do poeta é emocional; ora o que é intelectual é essencialmente individual, e o que é emocional é essencialmente colectivo e, portanto, quando se dá num indivíduo, representativo da colectividade a que ele pertence. É portanto a filosofia do poeta, e não a do filósofo, que representa a alma
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da raça a que ele pertence. Encarada a questão sob outro ponto de vista, isto ainda mais nitidamente se percebe. Na obra de filosofia a forma nada vale: a ideia é tudo. Na obra de poesia a ideia e a forma estão ligadas numa dupla unidade, unidade imaginativa, isto é, unidade que vem da fusão da emoção e da ideia que em sua essência é o acto de imaginar. Ora a imaginação depende da organização dos sentidos do indivíduo: um visual imagina de modo inteiramente diverso que um auditivo, um indivíduo de intensa vida interior e pouca atenção ao mundo externo, de modo diferente de ambos. De que depende a organização dos sentidos? Sem dúvida alguma, da hereditariedade. E a hereditariedade o que é que mais transmite e grava? Os característicos de raça. O acto de imaginar é o que, pois, em linha directa descende da alma da raça. E como o mais alto grau de imaginar é o do poeta, é na poesia que vamos buscar a alma da raça, e na filosofia dessa poesia aquela a que se pode chamar a filosofia da raça. – O espaço não permite que mais nitidamente, ou mais argumentadamente, se exponha este problema. Para o nosso limitado caso, o pouco que aqui se expôs deve bastar.
Consideremos pois qual a filosofia do primeiro grande período poético da Europa – a Renascença. Constata-se sem dificuldade qual ela seja. É o espiritualismo puro e simples, em uma ou outra das suas formas. Ocorrerá perguntar: mas não foi a Renascença inimiga do espiritualismo? Do da média foi, mas esse era um espiritualismo inferior. Da forma católica e aristotélica foi inimiga a Renascença; mas foi para ser mais e mais puramente espiritualista, foi para se lançar no maior espiritualismo da Reforma e de Platão. Platonista foi, de resto, toda a poesia de algum valor da Renascença. É uma das provas, a mais flagrante.
Como vimos, o espiritualismo é um sistema que tem seu centro de realidade na consciência: logicamente, em seu temperamento, um espiritualista é um homem que dá atenção à vida interior e inferiormente à vida exterior. Toda a poesia da Renascença é de supor portanto que gire sobre assuntos humanos e não da Natureza. Assim é: o que de supremo tem a poesia da Renascença é a poesia épica – isto é, da acção humana –, e a poesia dramática (Renascença inglesa, culminando em Shakespeare), de acção humana mais essencialmente ainda. Com isto, fica tirada a prova real.
No Romantismo surge-nos imediatamente o contrário. Cessa, a não ser em arremedo de influências da Renascença, a poesia épica e dramática; nasce a verdadeira poesia da Natureza, e aparece um novo género de poesia amorosa. É comum a ambas um característico basilar: perante a Natureza ou perante o amor, o indivíduo comove-se até perder a individualidade, entrega-se. Mas não se entrega como (no caso da poesia amorosa, não da Natureza) por vezes o poeta da Renascença fazia, por humildade; aqui, no Romantismo, entrega-se para viver uma vida mais ampla. Ora o indivíduo não se entrega – e menos então se entrega para viver – a qualquer coisa exterior que não considere como real. Temos pois, em última análise, que o romântico representativo se sente parte de uma Natureza real, ainda que espiritualmente real. Estamos em pleno sentimento panteísta. Com efeito, desde o panteísmo materialista de Goethe ao panteísmo espiritualista de Shelley, o romantismo nada é senão panteísmo.
Posto isto, ficamos sabendo quais as “filosofias” da Renascença e do Romantismo, e vendo qual a linha evolutiva da fi-
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losofia da poesia europeia, qual, portanto, a evolução da alma da civilização da Europa. Evolui – o que de resto se podia ter concluído a priori, mas foi melhor que doutro modo se concluísse – do mais simples para o mais complexo; parte do espiritualismo e avança até ao panteísmo, e daí, inevitavelmente subirá para a complexidade máxima do transcendentalismo, até chegar ao limite, o transcendentalismo panteísta.
Porque característicos, por assim dizer, exteriores se pode conhecer o sentimento transcendentalista? Nas duas formas menos complexas do transcendentalismo, o materialista e o espiritualista, o indivíduo sente-se como o panteísta, parte de um todo, mas com a diferença que, para ele, esse todo é sentido como irreal, como ilusório. Decorre daqui que o poeta transcendentalista materialista ou espiritualista fatalmente será um poeta pessimista. Mesmo que, transcendentalista espiritualista, conceba como vagamente espiritual o Transcendente, esse Transcendente, por sua própria, concebida, natureza, é sentido como Mistério, e mesmo onde levanta abate. – Percorrendo todo o Romantismo não encontramos este sentimento; apenas, em Alfred de Vigny e nos seus descendentes, já pós-românticos, há um vago arremedo dele. Mas, ao atentar bem nos característicos que deduzimos como devendo ser os da poesia transcendentalista espiritualista, revela-se-nos imediatamente que estamos em Portugal e em plena descrição da poesia de Antero. Vemos, pois, que especiais condições de raça fazem do sentimento transcendentalista apanágio de Portugal. Se o transcendentalismo, sob forma de emoção, começou entre nós, entre nós deve continuar. Vejamos pois se a sua forma mais alta e complexa, o transcendentalismo panteísta, foi, acaso, atingida já.
Não é preciso mais do que atentar na mera expressão da nossa nova poesia para nos encontrarmos em pleno transcendentalismo panteísta. Logo no vestíbulo da investigação nos aparece a característica contradição deste sistema. “Materialização do espírito” e “espiritualização da matéria”, “choupos d’alma”, quedas que são ascensões, folhas que tombam que são almas que sobem – não é preciso mais, repetimos. Eis, em seu pleno estado emotivo, o transcendentalismo panteísta. Quanto mais se analisa mais claramente isto se revela. Para os nossos novos poetas, uma pedra é, ao mesmo tempo, realmente uma pedra, e realmente um espírito, isto é, irrealmente uma pedra… Mas para que continuar? A evidência de certas provas, quando o que fica provado traz consigo tudo em que pusemos a nossa esperança e a nossa fé, embriaga de alegria para além de se poder ficar com a lucidez intacta e poder-de-exprimir em equilíbrio.
E quais são, enfim, as conclusões últimas de quanto neste artigo expusemos? São aquelas em que através de todos os nossos artigos temos insistido. Se a alma portuguesa, representada pelos seus poetas, encarna neste momento a alma recém-nada da futura civilização europeia, é que essa futura civilização europeia será uma civilização lusitana. Primeiro, porém, consoante todas as analogias no-lo impõem, a alma portuguesa atingirá em poesia o grau correspondente à altura a que em filosofia já está erguida. Deve estar para muito breve portanto o aparecimento do poeta supremo da nossa raça, e, ousando tirar a verdadeira conclusão que se nos impõe, pelos argumentos que já o leitor viu, o poeta supremo da Europa, de todos os tempos. É um arrojo dizer isto? Mas o raciocínio assim o quer.
Versão dactilografada das secções «VI» e «VII» do testemunho impresso publicado por Fernando Pessoa com o título: «A Nova Poesia Portuguesa no seu Aspecto Psicológico», in A Águia, 2ª série, nos 9, 11, 12, Porto, Setembro, Novembro, Dezembro de 1912, pp. 86-94, 153-157, 188-192.