[BNP/E3, 72 – 24–25]
Lisboa, 23 de Outubro de 1932.
Meu caro Osório de Oliveira:
A doença, que me inibiu, desculpavelmente, de escrever o artigo sobre Goethe, que lhe prometera, fez também, menos desculpavelmente, com que até agora lhe não tenha agradecido o exemplar, que me ofereceu, dos Poemas de seu Pai.
Ao agradecer-lho enfim, desejo não limitar esta carta ao simples agradecimento. O caso poético de Paulino de Oliveira oferece, a meu ver, um aspecto curioso, cuja análise não posso furtar-me a delinear.
Seu Pai era organicamente um pagão – não um pagão por poesia (como os pseudo-clássicos do século XVIII), não um pagão por política poética (como os que, então ou depois, achavam que falar de Vénus era uma maneira hábil de deserdar a Virgem Maria), mas um pagão verdadeiro, sanguíneo, sentindo o paganismo vitalmente, vivendo-o no espírito, como qualquer pagão dos tempos pagãos o viveria.
Sucede, porém, que Paulino de Oliveira viveu em nosso tempo, que não no de Horácio. E é essa discordância entre o homem e a época que me parece explicar dois dos característicos, a meu ver, distintivos dos poemas de seu Pai – o tom, mais ou menos audível, de angústia – a angústia do exílio-nato, da íntima expatriação –, e o facto de que, tendo ele notáveis, acentuadas, qualidades poéticas, a sua obra não atinge a perfeição, não só formal mas expressiva, a que a Natureza, se não fora a Sorte, a destinava.
Não é, contudo, o simples caso de não ter nascido no tempo de Augusto que constituiu para seu Pai o estorvo poético que aponto. Tivesse ele, sem diferença de época, nascido, ou sido educado, em Inglaterra – onde a cultura é greco-romana com predominância do espírito grego (já não digo em França, onde o espírito romano, com o que tem de fruste, predomina) –, e tanto bastaria para haver aquela harmonia entre o homem e o ambiente mental sem a qual a obra perfeita é impossível. Digo "a obra perfeita" com dois sentidos, com uma dupla intenção – a obra perfeita como obra, e a obra perfeita como expressão do homem.
[25r]
Acresce que seu Pai não teve, ao que parece, contacto algum profundo com um ambiente cultural estrangeiro, que, ainda que menos perfeitamente que o inglês, em certo modo o libertasse para dentro. Não teve, creio, estivesse onde estivesse, outro clima do espírito senão Portugal. Ora aqui em Portugal de agora, com um século de má cultura francesa a suceder a dois de má cultura latina, o ambiente mental não podia ser, para um pagão-nato como ele, senão uma Inquisição por que ele não deu. A dois séculos de deseducação ministrada por pseudo-humanistas, que do latim só sabiam o latim (tornando-o assim deveras uma língua morta) seguiu-se um século de deseducação ministrada por anti-humanistas, que nem português, quanto mais latim, sabiam. Os símbolos da época eram o Guerra Junqueiro, que conseguiu plagiar o Hugo sem o plagiar, o Teófilo Braga, que não existia, e o suicídio do Antero.
Num ambiente destes, qualquer sinceridade, como o paganismo de seu Pai, estava condenada de nascença a estiolar ou calar. Tão intenso, porém, era o sentimento pagão que nele animava que em alguns poemas conseguiu fugir do cárcere. Esses poemas, creio ficarão. Não deixarão, quase o afirmo, de ser incluídos na Antologia Portuguesa definitiva que alguém futuro formará.
Não lho digo para lhe ser agradável, mas para me ser agradável a mim, pois que julgo que é a verdade.
Muito seu,
Versão dactilografada de uma carta que se encontra na base do testemunho impresso publicado por Fernando Pessoa com o título: «Sôbre os "Poemas" de Paulino de Oliveira», in Descobrimento, nos 6-7, Lisboa, Verão-Outono de 1932, pp. 333-334.