Carta a Fernando Pessoa, enviada de Paris, a 7 de Janeiro de 1913.
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Paris – Janeiro de 1913 Dia 7
Meu querido amigo,
Apresso-me a responder à sua carta hoje recebida.
O que nela diz, alegrou-me e entristeceu-me. Alegrou-me a sua colaboração nessa revista inglesa. Acho uma coisa óptima, um trabalho sobretudo útil e uma boa acção, qual é a de tornar conhecidos no mundo os poetas portugueses de hoje, fazer saber que num canto amargurado e esquecido da Europa, uma poesia grande e nova se começa a desenvolver rasgando horizontes desconhecidos, perturbadores e belíssimos. Não desanime nesse trabalho!
Acho muito feliz o novo plano de publicação dos seus versos. O título Gládio é, quanto a mim, um verdadeiro achado, uma coisa muito bela. Não o deve é revelar a ninguém, não vá surgir nas montras das livrarias qualquer plaquette anémica e imbecil com esse nome.
A «Sinfonia em X» não poderia ser incluída neste volume? Eu lembro-me que talvez pudesse ser e por isto: Nela, há com efeito um combate – o poeta esgrime, brande o gládio contra o desconhecido, o infinito, que quer abraçar, compreender, sintetizar. Que lhe parece? Mas isto da inclusão duma poesia neste ou naquele volume é coisa de somenos importância e que o não deve torturar.
O que na sua carta me entristeceu foi o que de si diz. Ainda bem que no «suplemento» escreve que um pouco de energia regressou. Creia que compreendo e, melhor, sinto muito bem a tragédia que me descreve, tragédia em que eu tantas vezes ando embrenhado. É uma coisa horrível! Um abatimento enorme nos esmaga, o pensamento foge-nos e nós sentimos que nos faltam as forças para o acorrentar. Pior ainda: sentimos que se nos dessem essas forças, mesmo assim, não o acorrentaríamos. E vamos dormindo o tempo. Intimamente sabemos que a crise passará. Fixaremos a ideia, e realizaremos. Mas embora saibamos firmemente, não o cremos. Eu por mim, meu caro amigo, embora saiba muito bem que hei-de escrever mais livros, não o acredito nestes períodos de aniquilamento. A este respeito devo-lhe dizer que me parece aproximar-se uma época de energia – após tantos meses de passivismo. Veremos... Que outro tanto lhe suceda, eis o que do coração desejo e acredito. Ah! como eu compreendo e sinto as linhas que você escreve: «Ainda assim eu não trocaria o que em mim causa este sofrimento pela felicidade de entusiasmo que têm homens como o Pascoais. Isto que ambos sentimos – é do artista em “nós” (?) misteriosamente. Os entusiasmados e felizes pelo entusiasmo, mesmo o Pascoais, sofrem de pouca arte.»
Como isto é verdadeiro e bem dito! E como eu me revolto quando aventando o ar, de narinas abertas, olhar olhando ao alto, e por altissonante o eterno Santa-Rita me lecciona: «Creia, meu querido Sá-Carneiro, em arte o entusiasmo é tudo! Como eu amo as pessoas que são todas entusiasmo! Que se curvam em face dalguém, ou dalguma ideia, sem reflectir, sem admitir meios-termos nem raciocínios. São estas as individualidades, as criaturas de raça. Ah! e eu, sou uma destas criaturas de raça, toda de raça!... Sou mouro, espanhol... Você, meu caro Sá-Carneiro, não tem entusiasmos, não tem instinto – é todo cérebro... E note, eu admiro as individualidades sejam elas o que forem. Conhece em Lisboa o Veríssimo amigo da papelaria do Camões? Como eu admiro esse homem... Todo papeleiro... E religioso, muito talassa...» Etc. E por aqui fora canta o contra-senso, a impetuosidade... o disparate, a desordem, em resumo, que nunca são o génio (ou quando muito são génios falidos) – porque esse, é certo, pode ser e é loucura, mas não loucura barata e mesquinha, sim loucura grande, resplandecente. Não imagina você como me incomodam, me arrepanham e torturam as conversas com este personagem de quem procuro afastar-me o mais possível. Actualmente há 15 dias que não o vejo. Ver que alguém não tem razão, e que triunfantemente a cada passo brama que a razão está do lado dele, é para mim uma coisa insuportável.
As suas cartas, meu caro Fernando, essas são, pelo contrário, alguma coisa de profundamente bom que me conforta, anima, delicia – elas fazem-me por instantes feliz. Como é bom termos alguém que nos fale e que nos compreende e é bom e sincero, lúcido, inteligente = grande.
O prazer com que eu [o] abraçarei daqui a um semestre! As longas, deliciosas conversas que teremos...
Acerca de ideias novas, esta nascida ontem à noite: Um artista busca a perfeição – é esta a sua tortura máxima, e desfaz e refaz a sua obra. Vence: atinge a perfeição e continua a querer fazer maior: porém a tela em que trabalha evola-se por fim, dilui-se, torna-se espírito – desaparece. Esse artista ultrapassou a perfeição. É possível que em vez dum pintor faça dele um músico. Não dou a isto, por enquanto, grande importância. Diga você a sua opinião. E muito obrigado pelo que escreve acerca da nova ideia do «Homem dos Sonhos».
Como já aí tencionava mandei o meu livro acompanhado duma carta ao redactor da Comoedia G. de Pawlowski. Ele deu-me esta resposta interessante (ler um papelinho junto). Não acha curioso? Na «Semana Literária» da Comoedia noticiou o recebimento do livro dizendo que era um volume de novelas publicado em português. Bem mais delicado que o Lebèsgue, porquanto eu não enviei o livro sequer à redacção; mas só a ele e para o seu domicílio particular.
Em aditamento devo-lhe dizer que outro título que me agrada muito é o de Ascensão aonde, talvez melhor (com certeza melhor, a não ser por causa do tamanho grande do Orfeu) cabe a «Sinfonia em X». Quero destacar aqui um admirável, um enorme verso seu, este:
«Quanto mais desço em mim mais subo em Deus.»
E como eu compreendo bem, profundamente bem essa quadra soberba pelo que diz nas palavras e no som: «Alma que... etc...» A crença maior, a verdadeira crença nobre e pura, é a descrita nela!
E um grande abraço, meu querido, meu muito querido Fernando
o seu
Sá-Carneiro
Escreva sempre!...
Como todas as minhas cartas esta é infame na prosa e na caligrafia.
Mil perdões. É que tocam a Martinica aqui ao pé de mim...