Revista que é o lugar por excelência da Vanguarda portuguesa, quer pela sintonização europeia quer pela radicalidade dos textos propostos, sobretudo os de Almada e Álvaro de Campos. Publicada em Lisboa em 1917, é retirada do mercado quinze dias depois. Dirigida por Carlos Porfírio*, contém apenso um manifesto sobre a passagem dos Ballets Russes* em Lisboa, assinado por Almada, Ruy Coelho* e José Pacheco*.Nela colabora Rebelo Bettencourt* sob o nome de Bettencourt-Rebelo, que abre o número com um elogio de duas páginas a Santa Rita Pintor* seguido de uma fotografia de página inteira do elogiado, e faz a seguir, sob o título «Futurismo», uma montagem livre de passagens traduzidas de manifestos de Marinetti, Boccioni e Carrà, ilustrada com três reproduções de quadros de Santa Rita Pintor. Seguem-se a transcrição em francês do Manifeste des Peintres Futuristes, ilustrado por reproduções de Santa Rita Pintor e Amadeo e um artigo também em francês, «L’Abstraccionisme Futuriste», assinado por Raul Leal, de novo incensando Santa Rita Pintor e a sua «oeuvre géniale». A omnipresença deste último na primeira parte da revista impõe um antetítulo para Saltimbancos (Contrastes Simultâneos), texto em forma de prosa, que é: «De José de Almada-Negreiros a Santa-Rita Pintor». Já a segunda parte da revista está sob a égide de Almada: ele aí publica um novo texto, Mima-Fataxa, desta vez em forma de verso, e ainda o Ultimatum Futurista às Gerações Portuguesas do Século XX, acompanhado de uma hoje célebre fotografia sua em fato de aviador. Intercalados entre estes textos, surgem um poema de Apollinaire*, mais quatro poemas de Blaise Cendrars* sobre a Torre Eiffel, todos comunicados por Sonia Delaunay*. E ainda três poemas inéditos de Sá-Carneiro, duas séries de poemas de Pessoa, Episódios*, mais o Ultimatum*de Álvaro de Campos e, enfim, dois manifestos futuristas traduzidos e lidos na 1.ª Conferência Futurista*: Manifesto Futurista da Luxúria, de Valentine de Saint-Point, e O Music-Hall, de Marinetti.

Que o Futurismo, nomeadamente as traduções de Marinetti, figurem com tal presença neste número único, que assim reforça a sua dimensão de manifesto em si mesmo, de Portugal Futurista não pode surpreender. Tanto mais que Santa Rita já o fizera publicar, ao Primeiro Manifesto do italiano, no Açoreano Oriental numa das suas primeiras traduções europeias. Tão pouco nos surpreenderá, também, que um texto futurista-sensacionista de Álvaro de Campos figure, atendendo a que Pessoa entenderia que, através da violência verbal e letrista do Futurismo poderia dar uma dimensão vanguardista ao whitmanneano Campos. O que mais surpreende, então, neste número único da extraordinária publicação, é a actualidade das suas referências externas para além da retórica futurista que os jovens portugueses queriam abraçar, decerto para tornar Portugal mais habitável, porque mais contemporâneo da europa. É aí que avulta a importância dos contributos, sobretudo os de Apollinaire e de Cendrars. Como nos surpreende a extensão da cumplicidade aos Delaunay, e a uma realidade parisiense que na verdade só Amadeo entenderia plenamente.

Mas definitivamente o mais surpreendente é que Santa Rita, enigmática personagem que parece arrancada das páginas do Moravagine que poucos anos depois seria a obra magistral de Cendrars, possa ter mobilizado todos os colaboradores a contribuir para a construção do seu próprio mito, tornando-se uma existência activa e longamente enigmática no contexto do Modernismo português, tanto mais inapreensível quanto dele não restam mais que esparsos testemunhos, contraditórios, entre a euforia de um êxtase admirativo e o desdém de Sá-Carneiro que em Paris o detestara por falta de carácter, como confessaria a Pessoa nas suas cartas. Esse provocador sem fim, que se alavancava no histrionismo futurista para fazer da vida a própria obra, o único que o soube entre nós fazer, mais dada que futurista e antes de poder saber o que era dada. A fotografia em veste alucinada num quarto estreito, a clownesca figura com que se projecta em anti-clímax de toda a mitificação que no mesmo número da revista reverte em elogio da sua inspiração, constituem, além dos sinais premonitórios a mais de meio século de distância do que seria a performance (como na Rrose Sélavy de Duchamp) um dos mitos mais activos, ainda hoje, desse incerto Modernismo que tivemos. Como a heteronímia de Pessoa, como a grandeza do Almada poeta face ao Almada pintor, que no entanto preferiu ir por aí na apresentação de si mesmo. Como o suicídio de Sá-Carneiro, talvez. Porque é tanto de interrogações e de enigmas sem resposta que se fazem os nós de uma corrente, quanto das zonas em que tudo, nelas, nos parece claro.

 

 

Bernardo Pinto de Almeida