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Fundo
Fernando Pessoa
Cota
BNP-E3, 19 - 16-17
Imagem
[Carta a Ronald de Carvalho]
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Autor
Fernando Pessoa

Identificação

Titulo
[Carta a Ronald de Carvalho]
Titulos atríbuidos
Edição / Descrição geral

[19 – 16–17]

 

Meu querido Poeta:

 

Escrevo-lhe a desoras da Delicadeza. Há meses já que o Luís de Montalvor me fez chegar aos olhos o seu Livro. Embora o lesse sem tardança, tenho demorado o agradecimento para além dos limites que se usam. A licença poética não admite tanto. Eu tenho abusado do direito concedido aos camaradas de responder longe de propósito. Começo a minha carta por lhe pedir as desculpas a que este adiamento obriga.

Não sei que lhe diga do seu livro, que seja bem um ajuste entre a minha sensibilidade e a minha inteligência. Ele é deveras a obra de um Poeta, mas não ainda de um Poeta que se encontrasse, se é que um Poeta não é, fundamentalmente, alguém que nunca se encontra. Há imperfeições e inacabamentos nos seus versos. Vêem-se ainda entre as flores as marcas das suas passadas. Não se deveriam ver. Do poeta deve ser o ter passado sem outro vestígio que a presença das rosas. Para quê os ramos quebrados, ainda, e partido o caule das violetas?

Eu não lhe devia dizer isto, talvez, sem prefaciar que sou o mais severo dos críticos que têm havido. Exijo a todos mais do que eles podem dar. Para que lhes havia eu de exigir o que cabe na competência das suas forças? O poeta é o que sempre excede o que pode fazer?

O seu livro é dos mais belos que recentemente tenho lido. Digo-lhe isto para que, não me conhecendo, me não julgue posto sobre a severidade sem atenção às belezas do seu livro. Há em si o com que os grandes poetas se fazem. De vez em quando a mão do escultor de formas faz falar as curvas da Matéria. E então é o seu poema sobre o Cais, e o seu Outomno, e[1] este e aquele verso, caído dos deuses como o que é azul no céu nos intervalos da tormenta. Exija de si o que sabe que não poderá fazer. Não é outro o caminho da Beleza.

 

 

[16v]

 

Eu detalho.

 

 

Tenho vivido tantas filosofias e tantas poéticas que me sinto já velho, e isto faz com que me dê o direito de o aconselhar, como Keats a Shelley, que esteja de vez em quando com as azas fechadas. Há um grande prazer estético às vezes em deixar passar sem a exprimir uma emoção cuja passagem exige palavras. Dos nossos jardins interiores só devemos colher as rosas mais afastadas e as melhores horas e fixar só aquelas ocasiões de crepúsculo quando doe demasiado sentirmo-nos. Nenhum poeta tem o direito de fazer versos porque sinta a necessidade de o fazer. Há só a criar aqueles versos cuja inspiração é perfumada de imortalidade.

Escrevo e paro. Pergunto a mim-próprio se poderá julgar tudo isto, porque não é transbordante de elogios, uma crítica adversa. Não o conheço e não sei. Mas repare que só a quem muito aprecio eu escrevo destas coisas. Decerto me faz a justiça de crer que a quem não tem nenhum valor eu digo imediatamente que tem muito. Só vale a pena notar os erros dos que são na verdade Poetas, daqueles em quem os erros são erros. Para que notar os erros daqueles que não têm em si senão o jeito de errar?

Com tudo isto, que parece hesitante no elogio, repito-lhe que o seu livro é dos mais belos que ultimamente tenho lido. A sua imaginação, doentia e delicada, é uma princesa que olha das janelas o luxo longínquo dos tanques. Vejo que sente os repuxos. Eles são com efeito as melhores horas da água, e decerto que os mais belos são aqueles, em jardins ainda do século dezoito.[2]

 

[17r]

 

A sua sensibilidade doe-me. Por certo que outrora nos encontrámos e entre sombras de alamedas dissemos um ao outro em segredo o nosso comum horror à Realidade. Lembra-se? Eramos crianças[3]. Tinham-nos tirado os brinquedos, porque nós teimávamos que os soldados de chumbo, e os barcos de latão tinham uma realidade mais preciosa e esplendida que os soldados-gente e os barcos reais. Nós andámos amuados longas horas pela quinta. Como nos tinham tirado as coisas onde púnhamos os nossos sonhos, pusemo-nos a falar pensando delas para as ficarmos tendo outra vez. E assim tornaram a nós, em sua plena e esplendida realidade – que paga a seda para os nossos sacrifícios! – os soldados de chumbo e os barcos de latão; e através das nossas almas continuaram sendo, para que nós brincássemos com a ideia deles. A hora (não se recorda?) nos era demasiado certa e humana. As flores tinham a sua cor e o seu perfume de soslaio para a nossa atenção. O espaço todo estava levemente inclinado, como se Deus, por uma astúcia de brincadeira o tivesse levantado do lado das almas; e nós sofríamos a instabilidade do jogo divino como crianças que apreciam as partidas que lhes fazem, porque são mostras de concebida afeição. Tão[4] belas essas horas que vivemos juntos. Nunca tornaremos a ser essas horas, nem esse jardim, nem os nossos soldados e os nossos barcos. Ficou tudo embrulhado no papel de seda da nossa recordação de tudo aquilo. Os soldados, pobres deles, furam quase o papel com as espingardas eternamente ao ombro. As proas dos barcos estão sempre para romper o invólucro. E sem dúvida que todo o sentido do nosso exílio é este – o terem-nos embrulhado os brinquedos de antes da vida, terem-nos posto na prateleira que está exactamente fora do nosso gesto e do nosso jeito. Haverá uma justiça para as crianças que nós somos? Ser-nos-ão restituídos por mãos que cheguem aonde não chegamos, os nossos companheiros de sonho, os soldados e os barcos? Sim, e mesmo nós próprios, porque nós não eramos isto que somos… Eramos de uma artificialidade mais divina… Escrevo e divago, e tudo isto parece-me que foi uma realidade. Tenho a sensibilidade tão à flor da imaginação que quase choro com isto, e sou outra vez a criança feliz que nunca fui, e as alamedas e os brinquedos, e apenas, no fim de tudo, a supérflua realidade da Vida…

Perdoe-me que lhe escreva assim… A vida, afinal, vale a pena que se lhe diga isto… Deus escuta-me talvez, mas de si ouve, como todos que escutam. A tragédia foi esta, mas não houve dramaturgo que a escrevesse. Para que lhe estive eu dizendo isto?

 

[17v]

 

I am assuming all the while that your review is an independant publication, by which I mean a publication unconnected with such odd offshoots of incompetence as that queer local product the “Sociedade de Propaganda de Portugal”. I think everyone taking your attitude should be warned of this pitfall. All right-thinking Portuguese would be with me in this. For your guidance, for you may not have heard of it, I may say that that society is a contrivance to obtain half-price entrances to picture-palaces and ten-per-cent discounts from some misguided tradesmen. Besides this, it will have been obvious to you from its most public characteristics – that of putting objectionable plates on the side-walls of objectionable hotels. Its collaboration should be eschewed. There is something shipwreck about it. It possesses no distinct European characteristic and has done great harm to Portugal. It has always been, to reverse que quotation, caviare to the particular.[5]

 

 

--- He has a low-class attitude towards generalities. His philosophical opinions, too, are very badly dressed. His morals and unpresentable and his opinions tattered.

--- Tem uma atitude grosseira para com as generalidades. Depois as suas opiniões filosóficas vestem demasiado mal. Não se faz nada com ele.

__________________________________

|*Vale a penas ter crido estes sonhos para se poder ser outra tentativa.|

 

 

 

[1] Outomno/mnaes\, e /seu\

[2] À margem do texto lemos, no documento original, os seguintes apontamentos:

|*Murcharam todos os lírios que pensamos em sonhar nos nossos versos… As opalas…. Choraram por nós as /Mas /Ora\, como dados não foram nunca o olhar das\ /E agora como as {…} já não choram – lembramos nós – as\ opalas.

 

Reparo de repente que a minha imaginação, a esfera da minha inteligência faz uma crítica ao seu livro. Fê-la amoralmente, como não podia deixar de ser, e porque assim o exigiu o nosso preciosíssimo convívio, em um jardim antiquíssimo, quando o mundo não tinha ainda criado a necessidade de ser /ter sido\ criado por Deus. Foram deveras de um ateísmo lírico /espiritual\ aquelas horas que perdemos em /no\ jardim. Existíamos só nós porque o jardim eramos nós todos…

 

Depois os registos foram-se… Os sons da sua vida prolixa demoram-me no sangue… Ficou-me a vida /o corpo\, como um exílio inevitável, e nós escrevemos versos que nos lembram isso de que fomos. Passa por nós a vida com uma inutilidade por uma sonolência…|

[3] crianças /(semelhantes)\

[4] Tão /Foram\

[5] Tenho vindo a assumir que a sua revista é uma publicação independente, isto é, uma publicação que não está relacionada com tais ramificações peculiares de incompetência como aquele estranho produto local, a “Sociedade de Propaganda de Portugal”. Penso que todas as pessoas que queiram tomar a sua atitude devem ser advertidas sobre essa armadilha. Todo o português com bom-senso concordaria comigo a este respeito. Para sua orientação, pois poderá não ter ouvido falar nisto, posso dizer que essa sociedade é um artifício para obter entradas a metade do preço para salas de cinema e descontos de dez por cento de alguns comerciantes enganosos. Para além disso, isto terá sido óbvio para si a partir das suas características mais públicas – a de colocar placas questionáveis nas paredes de hotéis questionáveis. A sua colaboração deve ser evitada. Há algo de errado nisso. Não possui nenhuma característica distintamente europeia e causou grande mal a Portugal. Tem sido sempre, invertendo a citação, caviar para o particular.

 

Notas de edição
Identificador
https://modernismo.pt/index.php/arquivo-almada-negreiros/details/33/2462

Classificação

Categoria
Literatura
Subcategoria

Dados Físicos

Descrição Material
Dimensões
Legendas

Dados de produção

Data
Notas à data
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Dedicatário
Destinatário
Idioma
Português

Dados de conservação

Local de conservação
Biblioteca Nacional de Portugal
Estado de conservação
Entidade detentora
Historial

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Documentação Associada

Bibliografia
Publicações
Publicação parcial: Fernando Pessoa, Páginas de Estética e de Teoria e Crítica Literárias, Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho, Lisboa, Edições Ática, 1966, pp. 135-138.
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