A noção de fingimento desempenha na obra de Fernando Pessoa um importante papel. Acaba por se relacionar com a de heteronímia e está presente sob uma forma explícita em alguns poemas, nomeadamente Autopsicografia e Isto. Diga-se,desde já, que a leitura que se faça destes poemas não pode ser literal; há nela, porque de poesia se trata, uma deriva de sentidos que, no entanto, não é suficiente para que se não possa ver em tais poemas uma arte poética, de modo tal que neles lingua­gem e metalinguagem poética se ínterpenetram. Como referiu José Augusto Seabra "as metalinguagens críticas de Fernando Pessoa não podem ser consideradas como ele­mentos subsidiários na sua poesia", mas fazem parte do "conjunto estruturado que é a sua poesia»  (Fernando Pessoa ou o Poetodrama, São Paulo, 1974, p.18). Há, pois, uma multipliciaade de linguagens poéticas que nem sempre foi devidamente valoriza­da nas críticas, sobretudo provenientes dos presencistas, que punham a questão da autenticidade ou da sinceridade do poeta. Na Pequena História da Moderna Poesia Portuguesa(3.ª ed., 1974, p. 121), José Régio considera-o um "desconcertante simula­dor" e João Gaspar Simões há-de tecer algumas considerações “sobre a sinceridade” de Pessoa na sequência da carta que este lhe enviou em 11 de Dezembro de 1931. Nesta carta fala-se da "inexplicabilidade da alma humana", o que faz com que a abordagem de qualquer obra de arte deva estar sujeita a "uma leve aura poética de desentendimento". Algum tempo antes, nos n.ºs 36 e 38 da revista presença, Pessoa tinha publicado precisamente os poemas Autopsicografia e Is­to. Gaspar Simões irá pôr reservas a tais pontos de vista num texto que é publicado, em 1937, no n.º 48 da presença. Aí não se recusa liminarmente a importância do fingimento na criação artística: «Que um artista saiba fingir o que não sente no momento em que se exprime, está certo. Fingir-se saudoso quando vazio de saudades é próprio de artista. Toda a expressão superior de um sentimento pressupõe em quem o exprime, e enquanto o exprime, capacidade de fingimento. Ai daquele que, vencido por dor pungente, tente dar-lhe expressão artística sob o domínio desse sentimento. Não é no acto de sofrer que o artista melhor se exprime, mas depois, mais tarde, quando a dor se transformou já em experiência". Ora é essa expe­riência vivencial que Gaspar Simões valoriza, o que o leva a admitir que, de acordo com a concepção dramática da poesia defendida por Pessoa, a "atitude dramática na poesia, isto é, a capacidade de exprimir emoções e sentimentos, não directamente de quem escreve mas de uma interposta pessoa em nome de quem dizemos exprimir­-nos – é o caso de Pessoa e dos seus heterónimos - não liberta o homem das pare­des do seu ser". Adolfo Casais Monteiro, no n.º seguinte, também de 1937, admite mes­mo que à despersonalização própria dos heterónimos - "é voluntária? é inconscien­te?", perguntará -se deve antepor a "simulação": "esta última, a meu ver, só existe no estabelecimento de certos detalhes, nome, fisionomia, dados biográficos; em tudo mais é aquela (leia-se: despersonalização) que nos aparece".

Cerca de dez anos antes, em 1928, saiu no n.º 14-15 da presença um artigo também de Gaspar Simões que se intitula “Modernismo", onde se considera que a arte é, como diz, uma transposição da vida, porque "entre os sentimentos, as sensações, as ideias vividas há uma verdadeira transição", de tal modo que "um artista recebe a vida, e devolve-a como ela lhe é". Tendo isto presente, verifica-se que o fingimento que Gaspar Simões considerou antes é uma forma de transposição "da vida", o que faz com que a sinceridade ou autenticidade seja apenas diferida de acordo com o chamado psicologismo presencista. No seu livro de 1931 O Mistério da Poesia, há­-de retomar esta noção: "todo o fenómeno estético é um fenómeno de transposição, quer dizer, um acto pelo qual o homem retoma a tensão original da sua vida interior" (ob. cit., 2.ª ed., 1971, p. 156-157). E, considerando explicitamente o caso de Pessoa, há-de olhar os heterónimos como "uma mistificação", para logo esclarecer que "por não saber harmonizar a sinceridade que a poesia exige com a insinceridade que viver implica é que Fernando Pessoa lançou mão, afinal, do expediente insince­ro dos heterónimos" (Vida e Obra de Fernando Pessoa, 4.ª ed., 1981, p. 281).

A poética do Modernismo afasta-se dessa "transposição da vida"; ela irá valorizar outros aspectos que se situam verbalmente no texto poético, tendo Pessoa apontado aqueles que hão-de informar a sua própria poesia: uma derivação dramáti­ca que conduz à heteronímia, o princípio de construção ou organização que infor­ma a realidade orgânica ou interior do poema, a complexidade entendida como forma de complementaridade entre a emoção e a intelectualização, um sentido de objectividade textual que faz com que esteja o "autor fora da sua pessoa". Tendo em vista uma descentração deste tipo, o heterónimo que assina Álvaro de Campos considera, na revista Sudoeste (n.º 3, 1935), este problema tendo em vista a rela­ção sinceridade-insinceridade: "Shakespeare era essencial e estruturalmente fictí­cio; e por isso a sua constante insinceridade chega a ser uma constante sinceri­dade, de onde a sua grandeza". Adolfo Casais Monteiro, que pertence também ao círculo presencista, mas que se afasta não raro de algumas das opções literárias e críticas aí defendidas, faz a seguinte observação, onde, aliás, alguma reserva é feita à insinceridade do poeta: " Ser sincero é (...) o que Fernando Pessoa nun­ca poderá declarar-se, por não lhe interessar, primeiro, e segundo por coerência, que a manteve sempre quanto a este ponto. (...) Cabe-nos a nós não tomar demasiado à letra as suas declarações que o seu espírito analitico tantas vezes reduziu a paradoxos que eram outros tantos becos sem saída, pelo excesso de dar às palavras um valor absoluto que não têm – , e reconhecer que esse poeta, sempre pronto a declarar a impossibilidade de exprimir a emoção, nos deixou uma obra em que ela pal­pita por todos os lados, e sob todas as assinaturas que usou".

Será em 1961 que Jorge de Sena publica O Poeta é um Fingidor (reed. em Fernando Pessoa &. C.ª Heterónima), onde o problema do fingimento é objecto de análise, tendo por pano de fundo um contexto cultural que aí será devidamente apontado. O sub-título deste estudo é "Nietzsche, Pessoa e outras coisas mais". Com efeito, Sena procura uma raiz nietzschiana que, estando presente no esteticismo da victo­rian age, teria chegado a Pessoa devido à sua passagem pela África do Sul e as suas escolas marcadas pela cultura inglesa. Referindo um excerto de um poema de Nietzsche ("o poeta é capaz de mentir / conscientemente, voluntariamente, / só ele é capaz de dizer a Verdade"), Sena considera a partir daqui que a verdade em poe­sia é uma visão alheia à antinomia entre o verdadeiro e o falso. A influência nietzschiana alargar-se-ia à encenação montada no "Ultimatum" por Álvaro de Campos na procura de uma espécie de Super-Homem que seria "o mais completo, o mais comple­xo, o mais harmónico" (o qual poderia corresponder, na linguagem do Pessoa de 1912 quando escreve "A nova poesia portuguesa" para a revista A Águia, ao Super-Camões). Num apontamento relacionado com o Sensacionismo, possivelmente de 1916 (cf. Pági­nas íntimas e de Auto-Interpretação, ed. por Jacinto do Prado Coelho e Georg R. Lind, 1966, p. 171), Pessoa refere que "o conceito de super-homem de Nietzsche é um conceito pagão" e isto poderia minimamente aproximar Nietzsche da nebulosa do Neo-Paganismo, a qual não deixa, mesmo, de assumir aquele aspecto decadente que já foi referido, embora em alguns passos dos seus escritos haja alusões à "débil e doentia mentalidade" do pensador alemão (cf. Páginas Íntimas..., p. 316). Sena, prosseguindo o seu estudo, aduzirá várias passagens de cartas ou outros tex­tos (cf. p. 105-107 e passim) em que Pessoa fala da sua tendência para a des­personalização e para a simulação, a qual poderia conduzir a essa personalidade superadora que, no seu caso era a tal soma de personalidades, as quais, no entanto adquiriam uma existência textual.

Será tambem a um nível textual que, na poesia de Pessoa, há-de ocorrer uma espécie de jogo entre sentir e pensar. À primeira vista, o sentir corresponderia à sinceridade e o pensar ao fingimento. Entre estes dois termos há uma dicotomia ou uma íntima relação? Se é de prever que entre sinceridade e fingimento haja dicotomia, verificar-se-á a seguir que entre sentir e pensar existe uma relação que, no caso de Pessoa, se diria estrutural. Consideremos o poema de 1914 "Ela canta, pobre cei­feira”; quando aí se afirma que "o que em mim sente está pensando", logo reconhece­mos que este passo deve ser lido à luz do já citado artigo de 1912 saído em A Águia, onde a noção de complexidade poética é apresentada como sendo a intelectualização de uma emoção e a emocionalização de uma ideia. No rascunho de uma carta dirigi­da a Teixeira de Pascoaes, Pessoa considera-o como um poeta que tem "tão interpenetradas as qualidades intelectuais e as emotivas, e pois tão espontaneamente sinta com o pensamento e pense com a emoção", sendo a obra da arte "filha (...) de um pensamento formativo, que esculpe a matéria bruta da emoção" e que "orquestra em unidade a dualidade essencial do pensamento" (cf. Correspondência Inédita, ed. por Manuela Pereira da Silva, 1996, p. 80). Tratando-se de uma carta cuja data pos­sível será 1927 ou 1928, confirma-se nela um ponto de vista defendido em 1912 nas páginas de A Águia, revista essa a que pascoaes esteve tão ligado.

Em Pessoa pode falar-se não só em engano ou fingimento mas também no autor enganado: "Não meu, não meu é quanto escrevo. / A quem o devo? / De quem sou o arauto nado? / Por que, enganado, / Julguei ser meu o que era meu? / Que outro mo deu?". Aqui, Pessoa, ao pôr em questão o sujeito da escrita, parece ir ao encontro de uma poética da mo­dernidade em que se institua o desaparecimento tendencial do autor. É o que acontece num dos vários prefácios que escreveu para o que seria a publicação da sua obra: "Finjo? Não finjo? Se quisesse fingir, para que escreveria isto? Estas cousas passaram-se, garanto; onde se passaram não sei, mas foi tanto quanto neste mundo qual­quer coisa se passa, em casas reais, cujas janelas abrem sobre paisagens realmente visíveis. Nunca lá estive – mas acaso sou eu quem escreve?" (cf. Teresa Rita Lopes, Fernando Pessoa et le Drame Synboliste, Paris, 1977, p. 502). O que se insinuou não é muito diferente de um passo do diálogo entre as veladoras do "drama estático" O Marinheiro quando uma delas afirma: "As vossas frases lembram-me a minha alma...", seguindo-se estas palavras de outra veladora: "É talvez por não serem ver­dadeiras... Mal sei que as digo... Repito-as seguindo uma voz que não ouço mas que está segredando..." O que está em questão é sobretudo isto: o fingimento, a insinceridade, o engano, a não-verdade revertem para a obra de arte onde são postos entre parênteses ou suspensos ao visar-se uma objectividade capaz de anular derivas de natureza puramente subjectiva "o artista não exprime as suas emoções" – , o que é conseguido pela opção por uma "literatura dramática", a qual, podendo decorrer da heteronímia, há-de, em qualquer caso, conduzir a expressão verbal a essa objectividade que, de acordo com as poéticas da modernidade, é assumida na própria realização do poema.

 

Fernando Guimarães