Título de uma obra planeada por Fernando Pessoa que nunca teve, no entanto, uma clara e única definição na sua mente. Assim é que o título aparece, em alguns projectos, atribuído a Ricardo Reis, noutros, mais numerosos, a António Mora, e existe mesmo um outro em que é previsto para o próprio Fernando Pessoa. Num outro ainda, O Regresso dos Deuses, e outros estudos neo-pagãos tem uma autoria hesitante: Ricardo Reis (ou António Mora). Mas O Regresso dos Deuses surge também como título geral, englobando um conjunto de obras, entre as quais Poemas Completos de A. Caeiro, Odes de Ricardo Reis e Acessórios de Álvaro de Campos. Neste mesmo sentido, vai um plano (E3 71A-2) em que, expressamente, Pessoa anota que O Regresso dos Deuses «contém»: O Regresso dos deuses, para além de A nova Revelação – Alberto Caeiro; A fase neo-pagã – Ricardo Reis; Milton superior a Shakespeare; Os doentes – Saudosismo. Interseccionismo. Sensacionismo; Princípios fundamentais (as teorias de Na Casa de Saúde de Cascais). Neste caso, o título particular referir-se-ia a uma espécie de Introdução Geral ao Neo-Paganismo Português, como também aparece, atribuído a António Mora, numa lista de obras afectas precisamente ao Neo-Paganismo Português (E3 21-1). É provável que, finalmente, se Pessoa se tivesse decidido, ou tivesse tido tempo para levar por diante o seu projecto, o título viesse a ser o de uma obra de Mora, que, num excerto de Notas para a Recordação do meu Mestre Caeiro, de Álvaro de Campos, redigido à volta dos anos trinta, continua a ser-lhe associada. Existem, de facto, muitos fragmentos, sem qualquer atribuição, mas com a indicação expressa de serem destinados a Regresso dos Deuses, e outros, com atribuição a Mora e como tal incluídos numa edição crítica da sua obra. Mas existe, igualmente, um longo texto com o mesmo título e com atribuição a Ricardo Reis, o que mostra como o projecto relativo a este heterónimo chegou a tomar corpo. De qualquer modo, todos estes textos fazem parte da cruzada que, a dada altura, Pessoa empreendeu em prol de uma «reconstrução da sensibilidade pagã», isto é, da recuperação da saúde que dois mil anos de cultura judaico-cristã (ou romano-católica) tinham feito perder. «Podendo ser hoje uma raça superior e culta, toda aristocrata, somos uma mistura de escravos reles e reles patrões de escravos. Não sabemos mandar nem obedecer; não sabemos querer ou pensar. O verme cristão adoeceu tudo dentro de nós. Já nada nos modifica nem nos faz erguer. (...) Perdemos a visão lúcida do mundo, e a inteira visão lúcida de nós-mesmos. Enfebrecemos e envelhecemos. O que há de novo em nós, sobre o que a Grécia tinha, é a velhice. (...) E em gemidos, e irritações instantâneas, e começos abandonados de acção, os nossos gestos se cansam, as nossas ideias se enredam, a nossa vida se amolece e se rebaixa», lê-se no texto citado, atribuído a Reis (Prosa, 185-186). O «morbo cristista», de que fala António Mora, só poderia ser curado pelo regresso às origens da nossa civilização, e isso passaria, inevitavelmente, por regressar à Grécia. Na cultura grega, urgia beber o culto da Razão e do Espírito Crítico, pilares de um movimento de combate à confusão, ao misticismo triste, ao excesso e ao irracionalismo dominantes. Todo o movimento «profundamente renovador», pensa Pessoa, tem de ser um movimento cultural, mas «não há profundo movimento cultural que não seja um movimento religioso» (Pessoa por Conhecer, I, 77). Daí, a necessidade de voltar aos deuses, de recuperar a energia do paganismo, cuja superioridade  metafísica, ética e estética em relação ao cristianismo é defendida por Mora. Por isso, sugere ele, num dos fragmentos acima referidos, que peçamos auxílio aos Deuses, para que «nos não percamos no labirinto das nossas falsas emoções, nem no abismo do excesso dos nossos amores, que é o fanatismo», e nos esquivemos «a esses morbos mentais, frutos mais daquele desequilíbrio nado da falsa fé, que combatemos, do que da nossa clara religião, cujo corpo imortal é a harmonia e a plenitude» (Pessoa por Conhecer, 446). É este apelo ao equilíbrio, à contenção, e também à calma alegria, na vida como na arte, que leva Mora a regozijar-se e a saudar em Caeiro, «o grande Pã» renascido, e em Reis, nas suas obras, um verdadeiro Regresso dos Deuses.

 

 

Manuela Parreira da Silva