Personalidade inventada por Armando Côrtes-Rodrigues (e Fernando Pessoa) que assina poemas publicados em Orpheu 2 (Junho, 1915).

Côrtes-Rodrigues, aluno do Curso Superior de Letras, terá evitado colaborar neste número da revista por temer a identificação com a «literatura de manicómio» dos «engraçadinhos» do Martinho e da Brasileira (epítetos dos jornais na época), tendo em conta a proximidade dos exames e a antipatia de alguns dos professores relativamente a Orpheu. Nas palavras Côrtes-Rodrigues: «Tinha-me negado a dar qualquer poema, com receio de que isso me trouxesse complicações no exame do fim do ano. O Dr. Adolfo Coelho, meu mestre, que morava em Paço de Arcos, era meu companheiro de comboio entre Algés e Lisboa e, se vínhamos ao pé um do outro, levava toda a viagem a desancar impiedosamente os do Orpheu. Foi então que Fernando Pessoa, que muito frequentemente me recomendava a duplicação de personalidade (a frase era dele), sugeriu que arranjasse um pseudónimo de mulher, achando até excelente que aparecesse uma colaboração [feminina] entre tantos poetas, guardado o costumado sigilo para provocar maior curiosidade. E foi ele quem escolheu o nome» (transcrito por Eduíno de Jesus, na sua introdução à Antologia de Poemas de Armando Côrtes-Rodrigues de 1956, pp. 40-41). Assim, Violante de Cysneiros nasceu da sedução heteronímica que Pessoa passou ao grupo, quer através das suas próprias criações, quer através do incitamento à despersonalização poética, e constituiu a mais arrojada criação estética do autor açoriano.

  As nove composições regulares (seis são sonetos) de estilo paúlico, «dum anónimo ou anónima que diz chamar-se Violante de Cysneiros» são precedidas da seguinte nota, assinada Orpheu: «Apareceram-nos na Redacção estes belos poemas, que um anónimo engenho doente realizou. Publicamo-los, porque disso são dignos, importando-nos pouco a personalidade vital de quem possam emanar. Toda a obra de arte é a justificação de si própria.». Todos os poemas apresentam a data de «Junho, 1915» e estão dedicados: os quatro primeiros «A Álvaro de Campos, o Mestre», os restantes «Ao Sr. Mário de Sá-Carneiro», «Ao Sr. Fernando Pessoa», «Ao Sr. Alfredo Pedro Guisado», «Ao Sr. Côrtes-Rodrigues» e «A mim própria de há dois anos». O efeito de encenação em grupo é intensificado pelo facto de cada um dos poemas jogar intertextualmente com obras dos autores a quem estão dedicados, como é o caso evidente do soneto dedicado a Pessoa, que remete directamente para O Marinheiro, publicado em Orpheu 1: «Tudo tão feito de Mim... / Só meu longe de passado / É como um sonho sem fim / Que o Outro tenha sonhado. // (...) // Marinheiro! Ilha Perdida! / E o meu sentido a sonhá-lo / É a verdade da vida.»

A encenação extravasa a produção poética: existe uma carta (de 5 de Julho de 1915) caligrafada como o faria uma senhora ilustrada do tempo, dirigida a Pessoa, mas cujo destinatário último é Álvaro de Campos, pedindo-lhe que submeta os poemas enviados «ao critério do sublime autor da “Ode Triunfal”», e, «se porventura  ele me fosse favorável – o que não creio – muito grata ficaria a V. Ex.ª me pudesse obter  a sua inserção nas colunas do Orpheu» (Colóquio-Letras 117/118).

Vinte anos mais tarde, no texto «Nós os de Orpheu», Pessoa afirma que os poemas da «personalidade inventada, Violante de Cysneiros, são uma maravilha subtil de criação dramática» (in Sudoeste, n.º 3, Lisboa, Novembro, 1935) e Óscar Lopes considera-os superiores aos de Côrtes-Rodrigues ele próprio, detectando algumas afinidades com a poesia ortónima de Pessoa e «uma riqueza implícita de problemas que o seu mestre não enjeitaria» (1987).

 

 

Bibl.: KLOBUCKA, Anna, «A Mulher que nunca Foi: Violante de Cysneiros», e MARGARIDO, Alfredo, «Uma Carta quase Inédita de Violante de Cysneiros», in Colóquio-Letras 117/118, 1990; SILVA, Manuela Parreira da, Realidade e Ficção – Para uma Biografia Epistolar de Fernando Pessoa, Lisboa: Assírio e Alvim, 2004.

 

 

Madalena Dine