Esta segunda parte da obra poética de Alberto Caeiro nasceu cedo, em 6/7/1914, com a escrita dos seus dois primeiros poemas, e o título parece ter surgido não muito tempo depois, possivelmente nesse mesmo ano. Os restantes seis poemas do conjunto, contudo, só foram compostos quinze anos depois, em 1929-30, logo após Pessoa ter percebido, pela segunda vez, que uma relação amorosa com Ofélia Queiroz — ou mesmo, dado o seu feitio, com qualquer pessoa — seria insustentável. Este nexo entre vida e obra, se realmente existiu, não terá passado de um despertar do interesse pelo tema do amor, sem que a história do pastor amoroso «transcrevesse» a história de Pessoa e Ofélia, a menos que o fizesse pelo inverso. «Amei, e não fui amado, o que só vi no fim», verso proveniente do poema escrito em 18/11/1929, poderiam ser palavras ditas por Ofélia, não pelo seu esquivo namorado.

Segundo a biografia de Alberto Caeiro, o ciclo de oito poemas deve-se ao facto de ele se ter apaixonado por uma rapariga com cabelos louros, enamoramento a que Pessoa se refere como um «pequeno episódio — expressivode qualquer realidade do autor, que ignoro» (no Prefácio a Aspectos). Álvaro de Campos, incapaz de esconder a sua indignação, escreveu, nas Notas para a Recordação do Meu Mestre Caeiro: «Não sei quem foi a mulher que teve o descaramento de ser amada pelo meu mestre Caeiro. Não quero saber, com quanto sou. Fosse quem fosse ou fingisse, desprezo-a do alto do que sou e em nome do universo». Admite que “O Pastor Amoroso”, apelidado por ele um «interlúdio inútil», é composto de alguns «dos grandes poemas de amor do mundo, porque são poemas de amor por serem de amor, e não por serem poemas», mas foi a partir daí que «a vida mental de Caeiro» começou a decair, sendo os “Poemas Inconjuntos” a última consequência poética dessa decadência. Ricardo Reis, no seu Prefácio à obra do mestre, explica o declínio nestes termos: «O cérebro do poeta torna-se confuso, a sua filosofia se entaramela, os seus princípios sofrem a derrota que, na indisciplina da alma, representa em espírito o que seja a vitória ignóbil de uma revolução de escravos». Num prefácio destinado a uma edição inglesa da poesia caeiriana, o anglo-heterónimo Thomas Crosse foi ao cerne do problema: «Love brought a touch of sentiment into this strangely unsentimental poetry. When that love brought disillusion and sorrow, it was not likely that the sentiment should depart» (excerto de uma passagem publicada, em posfácio, in Pessoa, Poesia de Alberto Caeiro, Lisboa, Assírio & Alvim, 2001, p. 248).

O Pastor Amoroso representa, assim, o desvirginamento da poética caeiriana, que, perturbada pelo seu contacto com a complexa e confusa dimensão dos sentimentos, não consegue — excepto por breves momentos nos Poemas Inconjuntos — voltar à sua inicial simplicidade e inocente clareza.

 

 

Richard Zenith