Es gibt allerdings Unaussprecheliches

Wittgenstein

 

Na Obra de Fernando Pessoa, ortónimo e heterónimo, poesia ou prosa, aparentemente não existem muitos textos sobre amor e erotismo nem muitas figuras femininas. No entanto eles estão lá, mesmo se subliminarmente atravessando os textos, em geral sob o signo da negação.     

Há contudo um número reduzido de poemas, ou só de versos, em que o foco temático é directamente a sensualidade e o sexo, tratados de uma forma claramente excessiva que contrasta com a do resto da Obra. Isso acontece em dois dos Poemas Ingleses, "Antinous" e "Epithalamium", sobre relações homo- e heterossexuais, respectivamente, que o próprio poeta comenta nestes termos a Cortes Rodrigues: “dois poemas ingleses […] muito indecentes e portanto impublicáveis em Inglaterra" (OPr, 1990, 416). O mesmo acontecerá ainda em várias das “Quadras” e em alguns dos versos que, na "Ode Triunfal", na "Ode Marítima", na "Saudação a Walt Whitman", incorporam uma quase exorcização do sexo pelo seu excesso, através de uma “linguagem “direct[a] e bestial”, como Pessoa o diz em Carta a Gaspar Simões (OPr, 1986, 188). Álvaro de Campos cria um clima de libertação sexual semelhante ao do Whitman de Leaves of Grass, de quemdirá ser o “meu condottiere da sensualidade autêntica” (FP/AC, 224), numa forma de aproximação textual que ao mesmo tempo denuncia a distância entre os dois poetas (Ramalho, 2003). Tais poemas e versos terão surgido não como expressão de sentimentos vividos, mas talvez só como exorcismo daquilo que Pessoa considerava, conforme na mesma carta declara: "um certo estorvo para alguns processos mentais superiores" […]. Por isso dirá: "decidi, por duas vezes eliminá-los pelo processo simples de os exprimir intensamente."

De resto, o conjunto dos textos inscreve o erotismo e a presença feminina noutras tonalidades, em que a negação é a forma linguística dominante. Para melhor esclarecer este modo de inscrição, é importante o que Pessoa afirma pela voz de Rafael Baldaya, no esboço de um “Tratado da Negação”: "[a] negação consiste em auxiliar o Manifestado a manifestar-se mais, até ele se dissolver em Não-Ser" (FP/RB, 1968, 43). De facto, os textos inscrevem e “desinscrevem” o amor e o erotismo bem como essa secreta mas omnipresente figura feminina: imagens de mulher, ideias e experiências do feminino, são fabricadas e intertecidas no discurso poético, mas sob o signo da negação. Apenas alguns exemplos, da vastíssima Obra:

Em Alberto Caeiro quase não há presença feminina. Para além da referência à mãe do Menino Jesus, no poema VIII de “O guardador de rebanhos”, que “Não era mulher: era uma mala / Em que ele tinha vindo do céu” (AlbC, 53), nenhuma outra figura de mulher surge nestes poemas. Em vez disso, será o próprio “eu” do discurso a assumir lateralmente uma função materna, desejando, por exemplo, levar ao colo e deitar o Menino (AlbC, 57). Ao ter decidido pregar uma partida a Sá Carneiro, com a invenção irónica de "um poeta bucólico de espécie complicada", Pessoa, conhecedor que é da poesia bucólica da Antiguidade, de Teócrito e Virgílio, retira a essa tradição dois ingredientes centrais: a presença de personagens pastoris e, dentro delas, a de personagens femininas. N’ "O guardador de rebanhos", temos uma Natureza sem mulheres, mais ainda, "sem gente".   Será nos poemas d’ "O pastor amoroso" que Caeiro introduz uma vaga presença feminina, cujos contornos ganham por vezes tonalidade erótica: “Ela continua tão bonita de cabelo e boca como dantes”; “E a boca quando fala diz coisas que não só as palavras” (VII). Apesar disso, a mulher-personagem é quase sempre indirectamente referida: unicamente pelos pronomes que a designam. É alguém que se materializa apenas pelos efeitos que provoca no “eu” masculino, em quem intensifica a percepção sensual da Natureza: “Agora amo a Natureza/ [...] como dantes / Mas de outra maneira mais comovida e próxima”; “ Por tu me amares. Amo-a do mesmo modo, mas mais” (I, 13-14). Só que a última estrofe revelará essa transformação como ilusória, ao deslocar a figura para o plano do puro sonho: “Ninguém lhe apareceu ou desapareceu / Ninguém o tinha amado, afinal.” (VIII). Nessa intensidade mesmo assim experimentada, o sujeito diz-se numa atitude vibrante, mas de pura passividade, conforme se vê pela função semântica de quase todos os verbos que lhe atribuem papéis estáticos, colocando-o na posição do lugar-onde de um amor só imaginado, posição essa que reaparecerá noutros textos.

Em Álvaro de Campos, vários poemas abrem espaço a figuras de mulher, com nome ou não. Mas talvez seja a sua inscrição anónima, desenhada como presença materna e/ou de amante o que melhor revela essas modalidades do feminino. Por ex., no I excerto de “Dois excertos de odes", o vocativo inicial à Noite, aparentemente uma entidade abstracta, quase absoluta, é também metáfora viva de mulher, ao ser invocada como “enfermeira antiquíssima” (v.87), “gesto materno afagando” (v.90), “Mão fresca sobre a testa-em-febre dos Humildes” (v.47), “domadora hipnótica das cousas que se agitam muito!” (v. 84). Esta Noite, aliás, evoca muitos lugares literários ou musicais, alguns deles já notados por vários críticos: quer o “Espírito da Noite” de Shelley, a dama da noite em Romeu e Julieta de Shakespeare, a “mulher-noite” de Rilke, quer a mozartiana “Rainha da Noite”.

Em Campos, esse sentimento de uma relação filial/maternal, de ternura, será a seguir alargado, e dentro dessa Noite-mulher-mãe parece ressoar o modelo da Virgem-mãe de Deus do Cristianismo, quando a voz poética se dirige à Noite como “Nossa Senhora/Das cousas impossíveis que procuramos em vão” (v.20-21) ou, em termos da "Ladaínha" católica "à Virgem", como: “Mater-Dolorosa das Angústias dos Tímidos” e “Turris-Ebúrnea das Tristezas dos Desprezados” (v.45-46).      Significativa  é também, em "O pastor amoroso", a referência à Virgem do catolicismo, na relação metafórica do pastor/monge amado por uma mulher/virgem Maria. E também no Livro do Desassossego a voz se dirige à sua "Nossa Senhora do Silêncio" ou "Nossa Senhora dos Sonhos", figuras claramente modeladas à imagem da Nossa Senhora cristã: mulher virgem, mãe-virgem, sem sensualidade ou sexualidade implicadas: “ó Virgem, que nenhum abraço esperas, que nenhum beijo buscas”. Verifica-se que a dimensão materna da figura feminina é a que mais importância adquire em grande número de textos. Ainda no I dos "Excertos" da Ode à Noite, a voz suplicante deseja a presença dessa Noite-mãe tutelar, justamente por ela criar uma atmosfera tranquilizadora ou uma diferença na alma: “Quando tu entras baixam todas as vozes” (v. 4-96). Vêmo-lo também em “A floating absence” (PI, 1993, 207-209), “Passagem das Horas [b]”, de Campos, no Livro do Desassossego (fr. 123, “Marcha Fúnebre, 447, etc.).

No entanto, mesmo quando materna não é, a figuração pessoana da mulher rasura quase sempre o corpo e a sexualidade, construindo uma sensualidade de espécie espiritual. Por exempo, no II excerto, mais curto, os últimos versos parece dirigirem-se à Noite, agora não como “mãe”, mas como companheira-amante, simultaneamente desejada e recusada. Os versos confrontam-nos com a expressão do desejo e sua imediata rasura, com uma proposição erótica e a subsequente rejeição gramatical: “Cruza as mãos sobre o joelho, ó companheira que não tenho nem quero ter” (v. 138), sendo o sujeito de novo situado nesse papel passivo da acção envolvente da mulher metaforizada. Este modelo de relação surge, sob diversas modalidades, em quase todos os textos de Pessoa, ecoando declarações suas em Páginas Íntimas de de Auto-Interpretação: “Quanto à sensibilidade, quando digo que sempre gostei de ser amado, e nunca de amar, tenho dito tudo. Magoava-me sempre [...] o ser obrigado a corresponder. Agradava-me a passividade, só me aprazia bastante para estimular, para não deixar esquecer-me, a actividade em amar daquele que me amava." (PIAI, 1966, 28).

Também em Fernando Pessoa ortónimo, as figuras femininas estão presentes através da sua negação, como se vê nestes versos do poema "Dorme enquanto eu velo" (OPo, 1990 [41]): “Quero-te para o sonho / Não para te amar”. Parece ser este o jogo que Pessoa joga ao nível da gramática e do estilo, com aquilo que designa como poética erótica. É que, ao inscrever amor e erotismo, entre sujeito e objecto é erguida uma barreira, que, por um lado, é a barreira das suas rejeições gramaticais de proposições logicamente eróticas e, por outro, a inelutável separação sujeito/vida. A essa barreira se refere também Bernardo Soares: “Há entre mim e [a vida] como um vidro. Quero esse vidro sempre muito claro, para a poder examinar sem falha de meio intermédio; mas quero sempre o vidro.” (LD, “O Amante visual”, 466).

A figuração do feminino ou da mulher (amante/mãe/companheira) toma a forma de presença metafórica. E será justamente nessa forma que elas têm a sua força, já que para o sujeito: “[a]s figuras imaginárias têm mais relevo e verdade que as reais. […] Há metáforas que são mais reais que a gente que anda na rua” (LD, fr. 367 e 32).

E nos casos em que o caminho percorrido pelo “eu” parte de um estímulo exterior, tal estímulo é também imediatamente deslocado para o campo do sonho ou de imaterialidade, onde é fixado. É o trajecto do poema "Ó tocadora de harpa", também de 'Cancioneiro' (OPo, “Passos da Cruz, IV), em que a voz poética se dirige a uma figura de harpista. O desejo de beijá-la não se concentra na mão, mas no gesto que essa mão desenha, gesto abstracto, "Gesto Puro", que o sujeito gostaria de prender, mas só nos "desvãos do sonho". Também o poema "A Outra" (OPo, 1990 [41]) constrói idêntica atitude: não é a figura de mulher presente nos primeiros versos que o sujeito abraça ou beija, mas uma "Outra", significativamente grafada com maiúscula. E do mesmo modo, o texto do LD intitulado "Conselhos às mal-casadas" sugere às mulheres que nas suas relações amorosas que privilegiem a imaginação ou o sonho, e não as situações concretas (LD, 425). (Isto contrasta com a representação directa do sexo nos poemas já referidos, "Epithalamium" entre outros.) Uma “Carta”, não assinada, formula assim a função dessas presenças femininas para o “eu” da escrita: “Eu não te queria para nada senão para te não ter.” (“CARTA”, LD, 422). E noutros textos a mesma ideia é reformulada: “Queria que, sonhando eu e se tu aparecesses, eu pudesse imaginar-me ainda sonhando - nem te vendo talvez,” (PI, 1993, 129); “Quem sabe se sonhando-te eu não te crio, real noutra realidade, […] onde sem corpo táctil nos amemos, com outro jeito de abraços e outras atitudes essenciais de posse” (LS, NªSª do Silêncio, 461); “[…] O pensamento impede-me ou confrange-me/ Do terror de ter perto e comungar /Em sensação ou ser com outro corpo.” (Fausto, III Acto, 87)

Pouquíssimos são os poemas que inscrevem o desejo sem o negarem ou fazerem deslizar para esse terreno do sonho. Um deles, "Dá surpresa de ser", de “Cancioneiro”, termina assim: “Apetece como um barco./ Tem qualquer coisa de gomo. /Meu Deus, quando é que eu embarco? /Ó fome, quando é que eu como?” (OPo, ,1990 [120]).

No universo algo diferente de Ricardo Reis, os poemas inserem nomes de mulheres, sempre vindos de Horácio, onde eram figuras chegadas da tradição poética grega (Neera, Chloe, Lydia), já sem corpo, mas representadas ainda como cortesãs. Em Reis elas transformam-se em presenças metafísicas, mas não são inspiradoras da escrita, nem qualquer voz lhes é atribuída. Tão pouco há aqui, como no poeta latino, rapazes adolescentes como objectos do amor. As suas figuras são agora assexuadas, nessa presença silenciosa e seráfica ao “eu” da meditação epicurista e estóica da vida.       

No Livro do Desassossego, o número de referências a figuras femininas é significativo. Figuras que acompanham o sujeito, na imaginação e nas sensações, na  percepção da vida e na escrita: “ocupam os intervalos nos meus pensamentos e os interstícios das minhas sensações”. São figurações, não só gramatical mas também estilisticamente femininas, isto é, às quais são atribuídas características tradicionalmente assim consideradas. Em vários dos fragmentos, o narrador constrói uma figura a quem confere contornos de mulher, mencionando elementos específicos que a identificam no seu ser corporal ou respeitantes à relação amorosa ou maternal. No entanto, depois de introduzida, ela é imediatamente deslocada ou eliminada por uma sua negação. Mas está lá, verbalmente presente, tão forte na negação como na presença: “Em todos os meus sonhos tu apareces, em forma de sonho [...] /Tu és do sexo das formas sonhadas, do sexo nulo das figuras (...) / Nenhum fascínio do sexo se / subentende / no meu sonhar-te […]. Os teus seios não são dos que se pudesse pensar em beijar-se. O teu corpo é todo ele carne-alma, mas não é alma é corpo (LD, “NªSª do Silêncio, 461).

O desejo surge assim esvaziado de qualquer conteúdo material ou corpóreo, já que "Possuir um corpo é ser banal” e “[s]onhar possuir um corpo é talvez pior". Por isso Bernardo Soares pode dizer: “O meu horror às mulheres reais que têm sexo é a estrada por onde eu fui ao teu encontro." (LD, NªSª do Silêncio, 461). Trata-se de figurações do feminino que supõem uma relação sem mediação do corpo, etéreas como anjos: “A mulher uma boa fonte de sonhos. Nunca lhe toques.” Fica evidente tanto a inviabilidade do amor como a existência da paixão amorosa, ambas tão reais como fictícias. Os textos confrontam-nos pois com uma persona que não é a representação de uma mulher referencial, mas a invenção de um ser sem sexo, neutro, curiosamente homólogo do que encontramos nas Cartas de Amor. Estas, emboradirigidas a Ophélia Queiroz, são mesmo assim escritas sob o signo da ficção, o que sintoniza com confissões como esta, no Livro: “Sempre que amei, fingi que amei, e para mim mesmo o finjo.” (LD, fr. 261).

Percebe-se que não só a frase de Baldaya, citada aqui no início, contribui para iluminar o valor dessa constante negação gramatical e ontológica inscrita nas composições pessoanas como as reflexões que percorrem o Livro do Desassossego a intensificam: “Às vezes o melhor modo de ver um objecto é anulá-lo, mas ele subsiste, não sei explicar como, feito de matéria de negação e anulamento” (LD, ”Via láctea, 485); “Não és uma mulher. Nem mesmo dentro de mim evocas algo de feminino” (NªSª do S., 462). “A repressão do amor ilumina os fenómenos dele com muito mais clareza que a mesma experiência. Há virgindades de grande entendimento.” (LD, fr. 271); ou ainda: “[a vida] só negada pode ser vivida na sua substância total (LD, fr. 232).           A negação pura e simples da figura criada funciona como desafio a uma explícita renúncia que é também requerida do ser amado/inventado, reduzindo-a a uma imagem inerte: “Possam os teus actos ser a estátua da renúncia, os teus gestos o pedestal da indiferença, e as tuas palavras o vitral da negação” (LD, fr. 345); "Ah, se fôssemos duas figuras num longínquo vitral." (LD, fr. 345).

A imaterialidade da figura, sonhada ou negada, reaparece na maioria dos poemas, de que serão exemplo, entre tantos outros, "A sensationist ode”, onde se lê “Let your silence tell me of the numberless dreams that are you" (MF) ou o Soneto XIII, que acentua uma irrealidade do amor: "I love my love for thee more than I love thee." (PING, 1987, 168).

Há aqui afinidades claras com os românticos ingleses que Fernando Pessoa tão bem conhecia e cujas atmosferas etéreas ecoam em muitos versos. Por exemplo, versos como estes de Wordsworth coincidem com a pessoana fantasia feminina:  “[...] sometimes I in thee have loved /My fancy's own creation.” (‘Stanzas’, XVI).

Também a figura da noite ou as “incertas” florestas de Shelley são partilhadas por Álvaro de Campos, Bernardo Soares, tal como figuram no Fausto e noutros lugares, além de o estatuto flutuante de sujeito e amada corresponderem aos de Pessoa: “”I am not thyne: I am a part of thee”. (Shelley, “Epipsychidion”). Igualmente próximas são as relações coma Keats, de quem, por exemplo, a visão e o sonho duma mulher etérea ressoam em textos pessoanos, como se lê num dos seus poemas: “Lamia”: “Lamia! [...] 'Begone, foul dream!' [...] no passion to illume / The deep-recessed vision: - all was blight;/ […] she vanished:  and Lycius'arms were empty of delight.” (Keats, “Lamia”, 111). Ou ainda, noutro poema, a imaterialidade da música e da relação à amada parece unânime com muitos textos pessoanos: “Heard melodies are sweet, but those unheard/ Are sweeter; therefore, ye soft pipes, play on;/ Not to the sensual ear, but, more endeare'd /Pipe to the spirit ditties of no tone:/ [...]/ Bold Lover, never, never, never canst thou kiss,/Though winning near the goal –“(Keats, "Ode on a Grecian urn", 156-57; 135).

Para além dessa presença na ausência, as figuras femininas que Pessoa a várias vozes constrói contribuem para que o sujeito crie outras modalidades de linguagem: “É quando falo de ti que as palavras te chamam fêmea, e as expressões te contornam de mulher. Porque tenho de te falar com ternura e amoroso sonho, as palavras encontram voz para isso apenas em te tratar como feminina” (LD, NªSª do Silêncio, 462); “Criemos, ó Apenas-Minha, por tu existires e eu por te ver existir, um arte outra” (LD, “Peristilo”, 474). São essas figurações do feminino que se tornam condição de possibilidade para a linguagem encontrar novas modalidades ou outro “estilo” que confere às próprias palavras dimensões vistas pelo sujeito como “femininas”. Isto pode articular-se, por um lado, com a figura de Diótima, do Banquete de Platão, também ela figural ou com estatuto de tropo, ao servir-se, na enunciação supostamente feminina, de um campo semântico directamente ligado às mulheres (Platão, 206b-207a). Por outro lado, prende-se também com o que Oscar Wilde, autor de tantas formas presente a Pessoa, faz dizer à sua personagem-pintor, em The Picture of Dorian Gray, a propósito da alteração de linguagem que o seu "modelo" provoca, originando um “novo modo do estilo”: “his personality has suggested to me an entirely new manner in art, an entirely new mode of style.  I see things differently, I think of them differently” (Wilde, 32).

Essa nova linguagem, considerada por Bernardo Soares “feminina”, parece permitir ao sujeito viver a própria textura literária como único lugar do amor: seja como uma espécie de corpo materno tranquilizante seja como a (quase) presença da companheira-amante, viva, ela própria, no corpo das palavras. Quer dizer: a relação amorosa ou de ternura acontece metonimicamente no próprio tecido verbal, como este fragmento parece sugerir: “As palavras são para mim corpos tocáveis, sereias visíveis, sensualidades incorporadas. Talvez porque a sensualidade real não tem para mim interesse de nenhuma espécie - nem sequer mental ou de sonho -, transmudou-se-me o desejo para aquilo que em mim cria ritmos verbais” (LD, fr. 259).

No seu ser evanescente, ou no seu quase não-ser, figuras de mulher ou metáforas do feminino invadem toda a Obra: em Álvaro de Campos, os poemas a uma rapariga inglesa, a uma loura débil, a Daisy, as várias menções a mulheres com ou sem nome; ainda em Campos, em Search, Soares e Pessoa ele-próprio, as figuras de irmã, mãe, tias, a ceifeira sem consciência nem voz, e tantas outras, aqui ou em textos das primeiras personalidades literárias de Pessoa. Há ainda, por exemplo, a Maria-grávida do Diabo (A Hora do Diabo), Salomé, a mulher cruel e inquieta; as personagens silenciosas d’O Marinheiro, a mulher-amante e inquiridora no Fausto. Mas talvez seja no Livro do Desassossego que essa figuração do feminino assume maior intensidade no modo da sua presença ao sujeito, sob formas sonhadas, a partir ou não de indícios de mulher exterior à linguagem, e onde as interrogações suspendem a (in)definição ontológica da figura, em simultâneo com idêntico questionamento no sujeito que as inventa: “Tu não existes, eu bem sei, mas sei eu ao certo se existo?” (LD, “Peristilo”, 473); ”Quem sabe se as paisagens dos meus sonhos não são o meu modo de te sonhar? Eu não sei quem tu és, mas sei eu ao certo o que sou? Sei eu se não és uma parte, quem sabe se a parte essencial e real, de mim? E sei eu se não sou eu o sonho e tu a realidade, eu um sonho teu e não tu um Sonho que eu sonhe? / Que espécie de vida tens?” (LD, NªSª do Silêncio, 459).

Apesar de negado, feminino, sensualidade, figurações de mulher, subsistem enquanto figuras textuais, tornadas presentes precisamente através da sua negação. Figuras que são criadas apenas em termos morfo-sintácticos e lexicais, e por isso talvez só figuras de estilo, já que também os deuses são para Bernardo Soares “uma função do estilo” (LD, fr. 87).

 

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Isabel Allegro de Magalhães