Não é muito confortável tratar de «O Último Sortilégio», sobretudo depois de ter achado a ralação (em termos de calendário tão bem cifrada!) entre a data do poema e a data do nascimento de Vergílio: dois mil anos; nem mais um, nem menos um dia.

Deste poema há duas versões: uma manuscrita, datada de 15 de Outubro de 1930, e uma dactilografada, enviada em cópia à revista Presença, na qual foi publicada em Dezembro do mesmo ano (n.º 29). Na carta de 16 de Outubro, enviada a acompanhar o poema (um dia depois da sua feitura, ou da sua datação!) diz o Autor a João Gaspar Simões: «Uma advertência: este poema é uma interpretação dramática da “magia da transgressão”. Se, por alguma circunstância, achar melhor não o publicar, não hesite em não o publicar». É óbvio que o destinatário deve ter pedido mais informações, nomeadamente acerca do que fosse a “magia da transgressão”. A época era rica nas mais variadas divulgações de matéria esotérica, mas tão fechadas e tão obscuras todas, que Pessoa não podia ignorar o efeito-mistério que a sua advertência, mais que o poema em si, iria produzir. A 26 de Outubro Fernando Pessoa respondeu assim ao fatal pedido de informações: «Deveras e realmente, não posso dar-lhe explicação nenhuma sobre a génese particular deste poema. Sobre a génese geral dessa ordem de poemas é que talvez haveria alguma cousa a dizer. Mas isso não tem interesse estético nem psicológico».

Acho que comparando a primeira grave «advertência» com a «impossibilidade posterior de dar explicações», e, mais ainda, com a «falta de interesse estético e psicológico», se deduz sem dificuldade a estratégia publicitária de Fernando Pessoa. Qual a razão por que ele terá publicado em vida o grosso dos poemas de índole esotérica é uma questão para outro tipo de pesquisa, para a qual não há neste espaço grande interesse. A maioria dos poemas de Edgar A. Poe tem carácter esotérico, e Poe foi um avatar apetecido desde Baudelaire a Pessoa. Mas Poe interessava-se pela morte (que é o grande interesse de todas as disciplinas esotéricas) mais dum ponto de vista ao mesmo tempo natural e metafísico; Pessoa dedica-lhe um interesse mágico.

Formalmente, o poema organiza-se em oito estrofes de sete decassílabos cada (abacddc), cujo cruzamento irregular dos primeiros 4 versos convém a um interesse ditirâmbico, muito bem exemplificado por exemplo por Schiller.                                                          

O poema tem 56 versos, número ao qual, na qualidade de múltiplo de 7, são conferidas várias propriedades mágicas, entre as quais se destaca a referida por Dane Rudhyar (The Astrology of Personality): ao nascimento físico segue-se o nascimento psíquico, que ocorre aos 28 anos de idade, e depois o nascimento espiritual, aos 56 anos.

Lembre-se o símile místico cristão dos dois nascimentos: o nascimento para o mundo e o nascimento para Deus (morte física). Que o poema de Fernando Pessoa tem que ver com a morte física e com qualquer espécie de renascimento ou de perpetuação, disso não resta a mais ténue sombra de dúvida.

Referido este ponto, convém fazer uma pequena observação acerca da organização semântica e estilística do texto. À primeira vista, não só não oferece soluções com interesse, como pode considerar-se banal («amplo vento», «não sou mais do que os bosques e as estradas» e sintacticamente ambíguo, ou forçado: versos 13, 25, 46, por exemplo). Fica a impressão de que se trata dum poema trivial, em que o título oferece logo a triste conotação saudosa de «último». Dum ponto de vista da terminologia esotérica pretendida, verifica-se porém que está tudo certo. O «amplo vento» é o ar das formas pensadas, isto é, dos pensamentos tornados energia a nível astral (vd. Ralph Metzner, Maps of Consciousness, Nova Iorque 1974); do mesmo modo, as «Fadas e elfos» são os elementais da alquimia, e até o adjectivo «lustroso» tem um significado alquímico, tal como num soneto hermético de Camões, o soneto 13 da edição de 1595. Finalmente, o verso 25 usa uma das mais belas metáforas da alquimia: aquela que considera o sangue como um mar interior: «o mar dos braços», the blood which is individualized sea-water (Rudhyar, op. cit.).

As deidades da sexta estrofe são os clássicos deuses infernais que se prestam a magias negras de amor e morte («evoquei / Com a raiva de amar em alvoroço»), são as deidades invocadas na Écloga VIII de Vergílio, mas são igualmente as deidades que se apresentam aos mortos a exigir o tributo que lhes é devido: à terra o que é da terra.

De modo que esta magia da transgressão, por muitas e muito estranhas deidades que invoque, é de transgressão sobretudo no sentido originário da palavra latina: travessia de um braço de água, deslocação, mudança. É esta a transgressão em sentido mágico.

O que acontece é que a transgressão, a mudança, tanto pode operar-se em termos de magia dita branca (que opera com certo tipo de energias), ou de magia dita negra (que opera com outro tipo, e aliás nigromancia surge por confusão com necromancia).

Para percebermos o sortilégio aqui em causa, temos obviamente que inserir o sistema simbólico do poema pelo menos dentro de uma das variantes. A terminologia insere-se quase integralmente na via alquímica, que é uma via considerada branca. Sucede é que a própria via alquímica se apoia em dois sistemas, a cabala e o hermetismo greco-egípcio, em cuja vertente popular se encontram elementos demoníacos, ou seja, da via negra.

Pessoa deve ter sido leitor assíduo da revista teosófica «Ísis», e foi tradutor de obras de teosofia. Mas qual teosofia? A hermética? A hindu? A cristã? A gnóstica? A salvacionista? A espírita? A reincarnacionista? A poesia, essa simplifica-nos muito a vida ao organizar-se por correntes de época, com as consabidas excepções, que formam o sal da investigação. Quanto ao espaço esotérico de propostas sobre a condição post mortem, as variantes actuais (que de resto parece preocuparem-se sobretudo com a condição ante mortem) não diferem certamente em número e confusão teórica da “politeosofia” da época de Fernando Pessoa.

Claro que a invocação é dirigida a uma pessoa feminina. «Interpretação dramática», disse Pessoa ao nestas coisas ingénuo Gaspar Simões, que mordeu a isca como peixe da costa. Dramático é sim o «Hino a Pan» de Crowley, dividido em grupos estróficos que cabem alternadamente ao sacerdote e à sacerdotisa que oficiam o grande Sabat de Maio (Beltaine). Em que tinteiro terá ficado essa alternância, que na conhecida forma que apresenta a tradução de Pessoa desaparece, tornando o poema puro entusiasmo descontrolado? 

Obviamente que a grande Deusa invocada no poema de Fernando Pessoa é a das religiões originais e é também a Shekinah cabalística, Spiritus mundi alquímico. Além disso, as demoníacas deidades aqui referidas ou invocadas são a inversão pura do valor espiritual das estrofes 13 a 16 de «Sôbolos rios que vão» de Camões. Após doze estrofes de reconhecimento dos variados e imensos desgastes do tempo no corpo e no espírito do homem, Camões recorda esses prazeres passados nas referidas e memoráveis estrofes onde se reconhece que acabou naturalmente o «condão».

Mas Camões opta por uma das duas vias oferecidas ao espírito, ou à alma, ou ao ser essencial: salvar-se ele (ser essencial,ou alma, ou espírito), e dar a matéria à terra («Que quanto da vida passa / Está recitando a morte!»).

E a outra via? Bom, aqui, se um dia não tivesse intervindo um “acaso”, nunca o poema se revelaria, porque a cifra era boa. Vergílio nasceu nos idos de Outubro de 70 a. C., ou seja, a 15 de Outubro a. C., pela nossa contagem. Fernando Pessoa escreveu (ou datou) o poema do dia de aniversário do nascimento de Vergílio, e aniversário muito especial: bimilenário. Sim, Não basta abrir a janela / Para ver os campos e o rio

Durante toda a Idade Média Vergílio gozou a fama de mago, não só pelas deidades tecnicamente tão bem invocadas na Écloga VIII, mas sobretudo pela lenda que o liga a uma tentativa de imolação do corpo com transferência do espírito para um corpo jovem previamente escolhido, onde o «ser essencial», por uma magia de transgressão, se conserva, ainda que noutro  invólucro corpóreo, esvaziado esse da sua alma. É útil consultar a este respeito Domenico Comparetti, Virgilio nel Medio Evo, Florença 1896, E. M. Butler in Early English Prose Romances, Londres 1858 e, ainda, David Conway, Magic, an occult Primer, Nova Iorque 1972.

Mas não parece que fosse esta a forma de conservação do espírito almejada pelo enunciador do Sortilégio a que nos estamos a referir. Publicado como chave cifrada de acesso a Vergílio, seu mago (poético?) tutelar, o processo aqui inverte-se, procura um pacto com forças demoníacas (forças da matéria, tais as directa ou indirectamente presentes nos conceitos frásicos «à bocca da caverna funda», «sacras potencias infernaes», «deidades do atro poço»). Trata-se da incorruptibilidade do corpo (não como fenómeno místico), mas como a incorruptibilidade maldita.

Fenómeno conhecido na Antiguidade com a designação de «lamia», renasceu com vigor na literatura europeia a partir do século XVIII, e basta lembrar talvez Die Braut von Korinth («A noiva de Corinto») de Goethe, que quase certamente conhecia a Magia Posthuma de Karl Ferdinand von Schertz, e o próprio Tratado dos Vampiros de Augustin Calmet, traduzido em alemão em 1752.

Mouni Sadhu diz, num  estranho tratado (The Tarot, Londres 1972): “After death, in some exceptional cases, the astrosome shows a strange and strong desire to be connected in some way with the body in the grave. If such a desire is even partially fulfilled (which is possible ‘under certain conditions’), the elementar may have some insight into the physical world, the only dear and understandable to him. If the elementar’s ‘last thought’ was directed to such a purpose, strange and ominous things may happen. Instead of using its energy for the decomposition of the corpse, the ‘phantom’, under the elementar’s compulsion, begins to make efforts to hold the cells together, rather than break their ties. The body then begins to lead a kind of vegetable life, if we like so to term that morbid state. It  does not decompose, for all the cells are held intact by the energy of the phantom, supported by the astrosome, and often, by some sinister forms from the astral plane” (pp. 321-22).

Que no «Simpósio Vergiliano comemorativo do bimilenário da morte de Vergílio», realizado em Múrcia em 1984, tivessem circulado poetas de devoção é claro, nem doutro modo podia ser; mas Fernando Pessoa, mesmo em Espanha, mais que de devoção é de altar. A data de “O Último Sortilégio” não chegou lá, nem deve ter chegado a lugar nenhum, porque isso não é do foro da investigação ortodoxa.

Mas, provavelmente, não era nada disso que Pessoa invocava; invocava sim, sob a capa do mistério esotérico, a perpetuação da sua obra (« quem me fiz e havia»), e, se assim foi, o sortilégio resultou, talvez mesmo com uma ajudinha  das «sacras potências infernais», disso não restam dúvidas a quem tenha uma pontinha de entendimento esotérico.

 

 

 

 

 

  Alberto Pimenta