A associação de Camilo Pessanha ao Modernismo fez-se usualmente pela via histórico-literária da determinação retrospectiva de percursores, prenunciadores e antecipadores. É recente a tendência para alterar esse esquema em favor de uma ideia menos linear, de acordo com a qual a escrita de Pessanha, mantendo-se alheia a prescrições de escola ou programa literário, pertence à mesma família espiritual, ao mesmo espaço ou à mesma ordem de experiências que, sob as assinaturas de Mário de Sá-Carneiro, Almada Negreiros, Ângelo de Lima e Fernando Pessoa, constitui a heterogénea constelação do modernismo português. Esta alteração só se verificou porque a indexação de Pessanha como representante nacional do Simbolismo já deu tudo o que tinha a dar e, no plano da exegese efectiva dos poemas, esse tudo foi quase nada.

Ainda assim, qualquer laço entre Pessanha e os poetas e escritores do Orpheu não se estreitará sem resistências mais ou menos pertinentes. O alheamento de Pessanha perante os grupos que, no seu tempo, ostentaram uma atitude e uma retórica vanguardista, o seu pouco entusiasmo pela modernidade social ou técnica, a sua indiferença política quase total, são traços que não compõem uma imagem adequada à qualificação de «modernista», sobretudo se tomada na sua acepção mais corrente. A própria dicção poética do autor da Clepsydra — seu único e problemático livro de poemas, publicado em 1920 nas Edições Lusitânia, de que era proprietária Ana de Castro Osório — parece avessa às liberdades tomadas por Sá-Carneiro, Pessoa ou Almada Negreiros quanto à absorção de léxico conotado com a comunicação vulgar quotidiana (nesse capítulo, Pessanha aparenta menos «modernismo» do que Cesário Verde). Se alargarmos o conceito e declararmos necessariamente subjacente a qualquer definição de «modernismo» uma noção ou até um princípio de «modernidade» mais ou menos consciente e articulado, a sua enunciação implicará uma primordial consciência histórica que, à primeira vista pelo menos, não parece destacar-se nos textos que Pessanha assinou. Suponhamos, por exemplo, esta ideia: «A modernidade é a forma através da qual é elevada à consciência plena de si mesma, sob a figura de mito, a realidade moderna por excelência que é a Cidade. Não uma cidade qualquer mas a Metrópole que a revolução industrial faz descolar do seu estatuto e ritmo milenários. […] A modernidade é, pois, consciência positiva de uma realidade histórica nova, mas o solo sobre que desponta é uma espécie de lodo infame que a alquimia dolorosa do Poeta deve transfigurar em ouro.» (LOURENÇO 1974: 203-204) É difícil, para não dizer impossível, conciliar com qualquer linha que Pessanha tenha escrito, em verso ou em prosa, semelhante noção que, no entanto, permeia abertamente os versos de Álvaro de Campos ou a ficção de Almada Negreiros. Mesmo considerando que o mito da Cidade tanto se pode traduzir em «crítica à Cidade, matriz de sofrimentos sem aparente redenção» quanto em «exaltação do fantástico quotidiano» (idem: 205), não seria exagero dizer que, de qualquer destes pontos de vista, tal mito está pura e simplesmente ausente da obra de Pessanha, em particular dos poemas da Clepsydra.

A conexão, se existe, tem pois de se procurar por outro lado. O lado mais óbvio parece ser (e aliás tem sido, na perspectiva já mencionada da história literária) o daquele fenómeno a que, no mesmo texto, Eduardo Lourenço chamou, pensando no caso de Fernando Pessoa, «desintegração do próprio sujeito da Poesia» (idem: 209). Essa desintegração é, em primeira instância, a da subjectividade poética figurada e concebida à maneira romântica, quer dizer, enquanto força criadora presente a si mesma ou tornada transparente para si mesma na obra criada, isto é, no poema. Em Pessanha já estariam legíveis todos os sinais de tal desintegração no modo como os poemas glosam uma fundamental impotência (passe o paradoxo) inscrita em todas as modalidades de auto-figuração do poeta. O exemplo clássico seria o primeiro poema, «Inscrição», do livro único de Pessanha: «Eu vi a luz em um país perdido. / A minha alma é lânguida e inerme. / Oh! Quem pudesse deslizar sem ruído! / No chão sumir-se, como faz um verme…».

A enigmática poética do desaparecimento, que fecha esta quadra abrindo o livro, não cessa de se reiterar ao longo de toda a Clepsydra. Indica simultânea e equivocamente o triunfo maior a que o poeta pode aspirar, enquanto poeta, em radical contraponto ao excesso de exposição e de subjectivação que a exaltação romântica do poeta como génio implicava, e uma espécie de resignado aprofundamento do impoder, isto é, da posição desarmada ou indefesa em que o poeta faz (ainda) ouvir a sua voz, como único desejo viável para um «sujeito» expropriado de qualquer força afirmativa, a começar pela do desejo. Ao chegar ao livro, quer dizer, a esse espaço que apesar de tudo torna sempre possível, se não forçoso, assinalar a vitória das faculdades construtivas que permitem a qualquer alma — mesmo «lânguida e inerme» — exteriorizar-se no mundo em forma de obra, o poema parece empenhado, com Pessanha, em destruir todo o narcisismo que decorre da própria ideia de «obra» enquanto obra de alguém. Logo nas suas iniludíveis conotações funerárias, a «Inscrição», com a economia típica dos epitáfios, torna-se emblemática pela retórica do apagamento que põe em cena algo como um contra-louvor no ponto preciso (o limiar do livro-obra) em que se poderia esperar, sem escândalo, um discurso onde o eu se auto-afirme.

Não admira de maneira nenhuma que a principal leitura destas quatro linhas, no século quase inteiro que passou desde a publicação do livro, tenha ficado, digamos, aquém da letra, permanecendo quase sempre ingenuamente cega ou surda à ironia autoconsciente que decorre da inscrição dessas quatro linhas no lugar em que estão inscritas. Tanto mais quanto a experiência de se constituir livro foi, para a poesia de Pessanha, uma aventura a tocar o limite do impossível e, não só uma aventura que não mais se repetiu, como ainda aventura bastante para esgotar no poeta, assim que delegou noutros a tarefa de dar realidade ao exíguo livro (trinta poemas na edição de 1920), qualquer veleidade de prolongar a obra se por obra se entender, como Pessanha sem dúvida entendia, obra de poesia. Com efeito, ainda que surgissem agora testemunhos de actividade poética (em sentido estrito) posteriores a 1916, além dos dois sonetos de intenção paródica que actualmente se conhecem, seriam sempre insuficientes para desmentir que a entrega do plano de composição da Clepsydra a Ana de Castro Osório, naquele ano, representou o ponto a partir do qual Pessanha como poeta lírico sumiu no chão.

O processo de «desintegração» do sujeito a que se refere Eduardo Lourenço tem, pois, na escrita de Pessanha, um palco de ocorrência bem anterior a Pessoa, se considerarmos que desde, sensivelmente, a última década do século XIX que, sem confusão possível com o descorado Simbolismo em versão portuguesa que por então circulava, os poemas depois incluídos na Clepsydra vinham sendo publicados avulsamente por Pessanha em jornais e outras publicações periódicas. O que há a pensar nessa anterioridade não é a sua qualidade supostamente precursora relativamente ao espectáculo do desdobramento heteronímico e sua significação no plano poético, mas as implicações imediatas desta economia que Pessanha sempre fez de toda a dimensão espectacular, quer dizer, de toda a responsabilização por qualquer inovação que se projecte para o futuro e da qual houvesse que se reivindicar «autor» ou «criador». O que surpreende, em Pessanha, a todos os níveis de leitura a que possa ser colocada, é a transição directa, na verdade a transição sem transição da experiência em que a alma se descobre «lânguida e inerme» para o sonho — propriamente poético — de desaparecimento do sujeito no silêncio da sua «inscrição». Esse devir-verme, para falar ao jeito de Deleuze, o que significa, isto é, que diferença faz no quadro estilhaçado de um modernismo que, no entanto, em várias outras das suas versões (e do modernismo não há senão versões) preferiu acentuar o aparecimento excessivo do sujeito mesmo afirmando que nada de substancial sustentava tal exibição?

A resposta já começou a ser dada, concretamente em textos de leitura crítica muito peculiares pelo jogo que estabelecem com a singularidade da assinatura de Pessanha. Óscar Lopes terá sido o primeiro, encenando uma interrogação sobre os motivos da intensa atracção pela obra de Pessanha, apesar de se encontrar ele mesmo nos antípodas da visão do mundo que tal obra, «na aparência», representa: «O que essa obra insinua é, pelo menos em primeira abordagem, a lírica da agonia, do afogamento, do naufrágio mas já consumados, ou naquela fase final em que serenamente os evocamos, contemplamos, nos seus vestígios diminutos (conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos) — vestígios mineralizados visíveis à fria transparência de uma água sobre a qual um navio singra, uma água que é a imagem do puro tempo incolor, inodoro, e por isso também ela mineralidade simples.» (LOPES 1969: 194) Guarde-se desta paráfrase sintética, acima de tudo, a repetição da palavra «vestígios», embora tendo presente que o desenvolvimento da exegese, aliás brilhante, na continuação do ensaio citado, não torna a pegar nessa palavra nem sequer a desenvolver a ideia que dela se desprende. O mesmo se passa, aproximadamente, com Leyla Perrone-Moisés ao escrever, duas décadas depois, para apresentar uma tradução francesa da Clepsydra, o parágrafo que vai transcrever-se em tradução de que é responsável o autor deste verbete: «Assim que entramos no universo poético de Pessanha, de imediato nos damos conta de ter chegado tarde de mais. Já tudo aconteceu, e tudo correu mal. A sua poesia é uma constatação de sinistro. Este universo de depois do desastre é constituído por destroços e indícios, tanto mais pungentes quanto o poeta no-los mostra de maneira sucinta e contida. Traços evanescentes de um caminho percorrido na areia, esteira de um barco que acabou de passar.» (PERRONE-MOISÉS 1991: 10-11)

Também aqui a ideia do vestígio predomina e, todavia, não regressa ou a ela não se regressa na sequência da interpretação. Ora, o vestígio condensa, bem para lá de uma imagem do mundo que aliás impede que se constitua plenamente em teor do texto poético, uma poética que articula a experiência da marca, do traço, do indício (da escrita, em sentido amplo) com o primado da temporalidade que encontramos desde logo inscrito no título Clepsydra que Pessanha converteu em emblemático sinónimo da sua assinatura como poeta.

Duas implicações claras daí resultam: primeira, a da impossibilidade de conciliar a escrita de Pessanha, atravessada pela proliferação do vestígio, com a retórica do símbolo, tal como românticos e simbolistas, em dois momentos distintos mas igualmente cruciais na história da modernidade poética, a teorizaram e celebraram; segunda, e que mais importa no presente contexto, a inviabilidade de associar a escrita de Pessanha a uma concepção da linguagem poética que se pretenda desprendida de passado, ou em conexão directa com forças e sensações presentes, ou em estado de orientação exclusiva para um futuro antevisto como presente em vias de se realizar. Nesta segunda implicação, particularmente legível no que Óscar Lopes e Leyla Perrone-Moisés descrevem como uma lírica do desastre ou do naufrágio «já consumados» a que o leitor acede sempre «tarde de mais», reconhecemos o ponto que bloqueia de antemão a entrada de qualquer modernismo programático (na verdade, de qualquer programa enquanto tal) na lógica geral da escrita de Pessanha. Nessa escrita, é sempre «tarde de mais» para alimentar qualquer veleidade de dar início ao que quer que seja e, num soneto de tipo heráldico onde o «sujeito» do poema se figura como se nada mais fosse além de sucessivas camadas de emblemas e traçados gráficos, o instante de assinalar a existência de uma «divisa» no brasão distintivo é paradoxalmente marcado pela consciência do excesso de destruição, de morte e de esquecimento que o constitui (ou destitui) como «sujeito»: «Divisa: um ai, — que insiste noite e dia / Lembrando ruínas, sepulturas rasas…» (Clepsydra: 24). Por isso, no verso não transcrito que abre este terceto, o «timbre» do brasão grava imediatamente com um termo crítico (se não pejorativo) toda a ilusão de grandeza de que o «sujeito» possa ainda estar imbuído (ou dar ao leitor a impressão de o estar): «Timbre: rompante, a megalomania…» (ibidem).

Este soneto bastaria, de resto, para desarticular um tópico em que os dois textos críticos atrás mencionados mal decidem se estão de acordo: chamemos-lhe o tópico da serenidade contemplativa da situação pós-desastre. A ideia da «fase final em que serenamente […] evocamos, contemplamos» (Óscar Lopes) o desastre ocorrido, reiterada na tese de um «universo fragmentário, que só um olhar forte une e transfigura em instantâneos de uma calma beleza» (PERRONE-MOISÉS 1991: 11) pouco se coaduna, na sua vaga sugestão wordsworthiana, com o tom, bem mais frequente nos poemas de Pessanha, de dramática e irreconciliável clivagem atravessando a voz do eu como uma ferida sem cicatriz.

A lógica ou a retórica do vestígio relaciona-se de perto com esse género de enunciação clivada que, em poemas como «Queda» (Clepsydra: 53), atinge o paroxismo gráfico de pôr em contraponto dois discursos sobre o coração, um deles escrito na página em corpo normal, o outro, deslocado para a direita e impresso a itálico. Que voz, entre estas duas vozes inconfundíveis, é mais a voz do «sujeito»? Aquela que, quase em surdina, regista a queda do coração convertido em «balão apagado» até ao ponto de mais não ser já do que um «inane, vil despojo» (ibidem), ou a outra que, ao lado, carrega a constatação do desastre com o desejo quase cínico de que ele se agrave numa efectiva e definitiva destruição? Que «sujeito» é mais sujeito, aquele que assiste, impotente, ao esvaziamento do lugar do coração, ou o outro que já nem suporta a debilidade vazia que satura a própria voz do primeiro? E qual destas vozes é, propriamente falando, serena, apenas evocativa ou calma e bela? Seja como for, qualquer das vozes é de natureza vestigial, seja em relação ao «sujeito» que nelas se exprime e que é afinal impossível de situar, seja relativamente ao acontecimento de que cada uma delas traça o rasto sem, no entanto, dele poder ser a representação única ou clara (e, por isso mesmo, ambas são também rasto da diferença irredutível que as separa).

Compreende-se que a própria palavra «voz», aqui usada como se fosse uma inócua metáfora crítica ou metapoética, tem de ser tomada, neste breve exercício de leitura, com todas as cautelas de quem sabe que não emprega senão uma forma figurada de falar (com as consequências daí decorrentes). Para «vozes» destas não há garganta designável, por outras palavras, não há «sujeito» que se lhes possa atribuir sem de imediato outro se perfilar. O vestígio tem, por isso, um poder particular para dizer, em qualquer uma das suas ocorrências, o ponto nevrálgico de tudo o que se tenta exprimir sob a designação de modernismo, pelo menos sob o ponto de vista poético: a experiência de uma irredimível descoincidência entre o signo e o sentido. Nesse plano, e com a única condição de se conseguir recuperar o poder de ler nos versos de Pessanha a ironia que tão poucos lhes reconhecem, é inteiramente plausível pensar a sua obra como a única que, partilhando por inteiro essa experiência e a tragédia que lhe é inerente, conseguiu em simultâneo ser a leitura espectral de todos os fracassos de que a memória do modernismo como programa está hoje sobrecarregada.

 

Bibl.: PESSANHA, Camilo, Clepsydra, ensaio de edição de Gustavo Rubim, suplemento ao nº 155 / 156 de Colóquio-Letras, Lisboa, 2000.

LOPES, Óscar, «Pessanha, ou o Quebrar dos Espelhos», Ler e Depois: Crítica e Interpretação Literária / 1, Porto, Inova, 1969.

PERRONE-MOISÉS, Leyla, «Camilo Pessanha ou les Mirages du Néant», in Camilo Pessanha, Clepsydre, s/d, Paris, Orphée / La Différence, 1991.

 

Gustavo Rubim