Os fragmentos de teor astrológico existentes no espólio de Fernando Pessoa podem dividir-se em várias categorias.

1) Textos de teoria astrológica: de sua autoria, alguns deles incluem anotações sobre regras básicas de interpretação de horóscopos, outros, doutrinas várias acerca de assuntos de natureza política, e outros, ainda, são análises de mapas do céu de amigos e conhecidos do poeta. Alguns destes textos são muito curiosos pois apresentam diferentes e inovadoras formas de encarar a teoria astrológica tradicional e que resultam da sua experiência pessoal neste domínio. Deste tipo de material existem cerca de 482 fragmentos, constituindo, alguns deles, longos e aprofundados textos sobre os diversos temas que formam a base filosofia astrológica. Aqueles que pela sua estrutura e conteúdo parecem ser os mais antigos, embora apresentem já uma certa complexidade, datam de 1908, ou seja, dos seus vinte anos de idade. Embora o seu interesse pela astrologia seja anterior, é nessa data que Fernando Pessoa vai iniciar, de um modo mais sistemático, o seu envolvimento com a astrologia.

2) Projectos editoriais mais ou menos desenvolvidos. Também oriundos da mão do poeta, eles constituem diferentes hipóteses de organização de todo o material referido em 1) e teriam eventualmente sido concebidos com vista a uma posterior publicação sob a forma de um Tratado de Astrologia, Manual of Astrology, Essays in Astrology ou, como também é referido em uma das suas notas: Systema de Astrologia. Em grande parte destes fragmentos aparece o nome do heterónimo astrólogo responsável por esta área da criação pessoana: Raphael Baldaya. Em alguns dos textos de teoria astrológica é propositadamente indicado o nome deste personagem.

3) Horóscopos pessoais. Também de sua lavra, são, na sua maioria, não apenas meros esboços de natureza gráfica, mas mapas do céu completos, acompanhados, alguns deles, de notas interpretativas. Tendo em conta os limitados meios disponíveis na época, cremos que o poeta terá precisado de várias horas de cálculos para a realização de cada um deles. Estes horóscopos foram, na sua grande maioria, feitos para os seus amigos e conhecidos. São ao todo 318, devendo a este número acrescentar-se cerca de 70 outros chamados "revoluções solares" e "questões horárias". Contrariamente aqueles 318 mapas do céu, muitos destes dois tipos de horóscopos dizem respeito a si mesmo e teriam sido realizados com o intuito, quer de analisar a sua vida passada, quer de prever alguns acontecimentos futuros. Porque fazem parte de áreas muito especializadas da astrologia, e porque exigem grande complexidade quer de cálculos, quer de interpretação, é importante salientar que hoje em dia poucos são os astrólogos que trabalham com estas “revoluções solares" ou "questões horárias.

4) Fragmentos contendo anotações de um ou de vários dados de nascimento, incluindo o nome, o dia, a hora e o local de nascimento, e destinados à execução de novos mapas do céu, foram, em grande parte, escritos pelo punho das pessoas que os solicitavam. Entre estes encontram-se alguns cartões de visita, folhas soltas, sobrescritos, fragmentos de papel de pequenas dimensões ou, pelo contrário, listagens contendo um elevado número de pedidos. Documentos deste tipo são ao todo 98, sendo a sua esmagadora maioria relativa a horóscopos que não figuram no espólio. Admite-se que, ou teriam sido feitos e entregues aos respectivos destinatários, ou não teriam sido sequer executados pelo poeta. 5) Gráficos de vários tipos, geométricos, numerológicos, cabalísticos, em que se estabelecem analogias, relações ou equivalências entre os planetas, os signos, os "aspectos", e as datas dos acontecimentos, etc.

Da análise de todo este material pode considerar-se que a astrologia, em Fernando Pessoa, teve múltiplas funções.

I) Ela foi uma estrutura filosófica e um meio de auto-conhecimento: são largas centenas os cálculos, listagens de acontecimentos, estudos e análises astrológicas, feitas em função do seu próprio horóscopo. Através deste tipo de exercício Fernando Pessoa analisava sistematicamente as várias fases e alguns momentos da sua vida, ao mesmo tempo que ia estabelecendo relações entre essas fases e as respectivas situações astrológicas que lhes assistiam. Entendemos que o conjunto de todos estes fragmentos quase que poderia constituir uma espécie de "autobiografia astrológica". Apresentamos um deles em que o poeta estabelece relações entre o momento da morte do pai, do seu irmão, ou do segundo casamento da sua mãe, com factores astrológicos que haviam presidido a estes acontecimentos. Alguns desses cálculos e pesquisas destinavam-se a tentar encontrar a data da sua própria morte. Dado que este assunto foi pacientemente estudado pelo poeta, cabe aqui fazer uma apresentação mais pormenorizada. Usemos pois alguns fragmentos guardados no seu espólio: o manuscrito com a cota 902-87 inicia-se com a frase "Duration of my life" seguida de vários símbolos astrológicos e cálculos numerológicos. No fragmento manuscrito com a cota 902-89 o poeta interroga-se: "Is Death always from MC?"; "What do solar directions mean on this respect?". Ainda outro, o 901-54, termina com a seguinte interrogação: "Has the cusp of the 8th house [casa relacionada, em astrologia, com a morte] anything to the with death in particular?". Noutro, dactilografado, e com a cota 901-53, escreve: "What, in my horoscope, can be considered as the lethal aspect?...". No manuscrito com a referência S2-41A/22, Pessoa analisa a chamada, em astrologia, "progressão do Sol" (astro indicador da vida), ao longo da sua própria existência, e aponta a data de "fim de Maio de 1935". Nessa data, o Astro Rei tocaria o denominado M.C. (Meio do Céu). Exactamente a mesma circunstância astrológica que relaciona estes dois factores, repete-se noutro documento, o S3-41A/32, no qual ele volta a apontar a mesma data, mas com maior exactidão: "22 May 1935". Noutro manuscrito, com a cota S4 8-10, o poeta vai ao ponto de tentar prever as circunstâncias que envolveriam a sua morte, e relata: "Death: [...] aving to disease, [...] sudden and violent disease [...] its seat the kidneys or that region [...] yet not a paceful death [...] not in hospital ...". Perante a globalidade destes excertos e acerca do problema da morte pode adiantar-se o seguinte: para todos estes cálculos o poeta utilizou a hora do nascimento que constava na sua certidão de nascimento, ou seja, três horas e vinte minutos da tarde. Ele não admitia esta hora como exacta, pois erigiu diversos horóscopos, utilizando alguns minutos de diferença. Um desses, por exemplo, com a cota S5 7-1, foi feito para as três horas e doze minutos da tarde. Aliás, uma carta enviada ao Brithish Journal of Astrology, datada de 8 de Fevereiro de 1918, ele alude justamente à sua incerteza quanto à hora exacta do seu nascimento. Se a hora real do seu nascimento fosse três e vinte e dois em vez de três e vinte da tarde, e se repetíssemos os cálculos por ele elaborados, chegaríamos a uma nova data que seria: finais de Novembro de 1935. Fernando Pessoa morreu, efectivamente, em 30 de Novembro desse mesmo ano, num hospital, subitamente, ao que se julga, com uma violenta cólica hepática. A técnica astrológica que o poeta utilizou nos referidos cálculos, fazia corresponder, a cada quatro minutos de diferença na hora de nascimento, um ano real da sua vida, donde, dois minutos de atraso, remeteriam para seis meses mais tarde a data por si encontrada. É verdade que esta não é a única, mas uma das várias datas possíveis encontradas por Pessoa ao estudar o seu horóscopo. No entanto, este exemplo mostra-nos até que ponto estas análises e interpretações astrológicas eram feitas com rigor e profundidade. Pode concluir-se que, na sua busca dos aspectos letais patentes na sua Carta do Céu, ele esteve muito próximo daquela que seria a verdadeira data da sua morte.

II) A Astrologia foi também um modo de conhecer os outros, daqueles que habitavam a sua esfera de relações: existem textos ou notas astrológicas em que ele analisa, ou relata circunstâncias ligadas a personalidades tais como Raul Leal, Sá-Carneiro ou Alexandre de Seabra. Outros fragmentos astrológicos são estudos acerca de figuras de que Pessoa tinha um especial tipo de interesse ou curiosidade: Alfonso XIII, Charles Dickens, Victor Hugo, Shakespeare, D. Sebastião, D. Carlos, etc.

III) A Astrologia constituiu um campo em que, provavelmente, trabalhou de um modo profissional, e, desse modo, teria auferido, ou tencionado auferir, determinadas remunerações. A este propósito é curioso observar o fragmento em que Fernando Pessoa, através de Baldaya, se anuncia como astrólogo, e publicita a sua New Theory of Astrological Periods (uma inovadora e original teoria astrológica concebida através da sua experiência pessoal) ao mesmo tempo que revela os diferentes honorários devidos pela realização de um horóscopo. Neste texto Pessoa estabelece os preços dos seus vários tipos de interpretação, de acordo com a maior ou menor profundidade. Pode-se então entender melhor qual a razão que levou Carlos Mascarenhas a escrever: "Leituras Gratuitas"...,..."Digo gratuitas mas pagarei o que Vª Exª estipular por cada uma d'ellas".

IV) A Astrologia, e através dela, o seu heterónimo/astrólogo, funcionaram como terreno propício para a utilização da profícua capacidade criativa de Fernando Pessoa. Ao que parece, praticamente todos os textos mais bem trabalhados e com um aspecto mais elaborado deveriam vir a ser incluídos nas diversas obras destinadas por Fernando Pessoa àquele personagem. Para além dos títulos já referidos, e fora da área especificamente astrológica, há ainda a acrescentar a "Introdução ao estudo do ocultismo", trabalho também remetido pelo poeta a Raphael Baldaya num outro fragmento existente no seu espólio.

V) A filosofia astrológica funcionou como plataforma de apoio utilizada por Fernando Pessoa na planificação e concepção da sua obra, como foi caso específico da Mensagem: na segunda das três partes em que Fernando Pessoa dividiu esta obra, ele agrupou doze poemas que são, no seu conjunto, e exactamente com a mesma sequência, uma compilação das características simbólicas dos doze signos do Zodíaco.

VI) O seu conhecimento astrológico funcionou como uma estrutura de organização dentro do seu processo heteronímico, ou seja, foi um veículo através do qual o poeta pôde criar uma irmandade de personagens, simultaneamente autónoma, una e complementar: os "signos ascendentes" dos quatro membros desta fraternidade constituída por Fernando Pessoa, Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos, são precisamente os relativos aos quatro Elementos Tradicionais - Água, Fogo, Ar e Terra, respectivamente. Deste modo, o mentor do projecto criou, à semelhança do que acontece na natureza, algo que era, ao mesmo tempo, uno e múltiplo. Qualquer símbolo que traduza a noção do Todo representa, também, necessariamente, a imagem de Deus, da Unidade. Assim, ao estabelecer um paralelismo entre estas quatro personalidades e os quatro Elementos, Fernando Pessoa estaria a criar uma consonância entre a dimensão terrena e divina.

Se, por outro lado, considerarmos os elementos relativos aos "signos ascendentes" (concernentes à horas de nascimento) e aos "signos solares" (respeitantes ao dias desses nascimentos) dos quatro personagens concluímos que: a Fernando Pessoa correspondem o Ar e a Água; a Álvaro de Campos referem-se o Ar e a Terra; a Ricardo Reis competem a Terra e o Ar (os mesmos, mas na ordem inversa de Álvaro de Campos); a Alberto Caeiro cabe o Fogo, tanto pelo “signo solar”, como pelo “signo ascendente”, ou seja, ele era a qualidade pura do elemento. Esta distribuição elementar nos quatro horóscopos, e em particular no caso de Alberto Caeiro, foi intencionalmente definida por Fernando Pessoa, a ponto de ser referenciada por si no Prefácio às «Ficções do Interlúdio»: «Referem os astrólogos os efeitos em todas as cousas à operação de quatro elementos – o fogo, a água, o ar e a terra. Com este sentido poderemos compreender a operação das influências. Uns agem sobre os homens como a terra, soterrando-os e abolindo-os, e esses são os mandantes deste mundo. Uns agem sobre os homens como o ar, envolvendo-os e escondendo-os uns dos outros, e esses são os mandantes do além-mundo. Uns agem sobre os homens como a água, que os ensopa e converte em sua mesma substancia, e esses são os ideólogos e os filósofos, que dispersam pelos outros as energias da própria alma. Uns agem sobre os homens como o fogo, que queima neles todo o acidental, e os deixa nus e reais, próprios e verídicos, e esses são os libertadores. Caeiro é dessa raça. Caeiro teve essa força. Que importa que Caeiro seja de mim, se assim é Caeiro?» (PIAI 109-110). Por outro lado, é curioso verificar que a Alberto Caeiro, o Mestre, atribuiu Fernando Pessoa o primeiro dos doze signos do Zodíaco, o número um, aquele que é o início do ano astrológico. Ainda no âmbito da heteronímia, a astrologia funcionou como meio para definir, de um modo coeso e obedecendo a uma certa lógica as características físicas, psicológicas e biográficas dos vários «companheiros de espírito»: tanto os traços fisionómicos como a estatura ou outras particularidades corpóreas que o poeta aponta para cada heterónimo são exactamente aquelas que, à luz das regras da astrologia, surgem da interpretação do respectivo horóscopo.

Também a datação quer dos acontecimentos biográficos, quer da feitura das obras destes autores se circunscreveu aos respectivos horóscopos: o caso mais flagrante é o de Alberto Caeiro. No seu horóscopo (PIAI 272) figuram algumas anotações subtis, mas que são fáceis de perceber para quem estuda astrologia: uma delas diz "Guarda[dor de] Reb[anhos] – pro[gressão] ¢ [do Sol em] Â [em conjunção com] ¤[Vénus] (rul[er] M[eio do] C[éu])" (figura 5). O que é que isto quer dizer? Nesta nota Fernando Pessoa associa o Sol, Vénus, o chamado “MC” (Meio do Céu) e ainda O Guardador de Rebanhos – a obra-prima do Mestre. Aqueles dois astros, no caso concreto do horóscopo de Alberto Caeiro, representam o nativo e a personalidade criativa do Mestre (o primeiro deles, o Sol), e o outro (Vénus), o ponto mais elevado desse horóscopo (MC), ou seja, o seu ponto limite, a circunstância mais sublime da sua vida, o seu Zénite. Por outras palavras, a criação de "O Guardador de Rebanhos" fica pois circunscrita à data que astrologicamente representaria o ponto máximo de ascensão, da criação poética de Alberto Caeiro. Poderíamos dizer que, astrologicamente falando, a O Guardador de Rebanhos corresponde o momento mais importante do destino criativo e da própria existência do Mestre. Outra relação muito curiosa entre a vida de Alberto Caeiro e o seu horóscopo é-nos apresentada através de outra nota escrita pelo punho de Fernando Pessoa no mesmo documento: através de uma série de símbolos astrológicos (ver também a figura 5), ele indica que a morte daquele mesmo heterónimo deveria ocorrer quando Júpiter (planeta que neste caso significa a morte) colidisse com o Sol pois é o astro que detém a energia vital e que assim rege o corpo físico e a vida daquele personagem. Logo a seguir, e no mesmo documento, Fernando Pessoa indica uma data: o ano de 1915. É efectivamente nesse período que, tal como nos é apresentado na biografia de Alberto Caeiro, Fernando Pessoa «mata» o mestre.

 

Paulo Cardoso, Mar Portuguez - a mensagem astrológica da mensagem, Lisboa, Editorial Estampa, 1990