Aquilino Ribeiro nasceu em 1885, Fernando Pessoa em 1886 e Mário de Sá-Carneiro em 1890. Praticamente filhos da mesma década, são, contudo, escassíssimas as informações sobre qualquer contacto entre estes escritores. Curiosamente, ambos jovens e ambos a começar a sua vida literária, Aquilino e Sá-Carneiro foram coincidentes em Paris, para onde o primeiro parte em 1908 e onde fica até 1914 em auto-exílio forçado pela participação no movimento republicano; o segundo parte em 1912 e aí permanece irregularmente até ao ano da morte, com dois regressos longos a Portugal (Junho de 1913 a Junho de 1914; Agosto de 1914 a Julho de 1915). Enquanto exilado em Paris, Aquilino frequentou como par o círculo dos republicanos portugueses em França e desenvolveu na época uma importante actividade de cronista (textos recolhidos por Jorge Reis em Aquilino. Páginas de Exílio 1908-1914). Nalgumas das crónicas, tal como em Leal da Câmara (1952) é possível documentar o trabalho, à época, quer de escritores, quer de artistas plásticos portugueses fixados na capital francesa.

A contiguidade geográfica, a nacionalidade, a proximidade etária poderiam ter feito cruzar Aquilino e Sá-Carneiro, contando ainda o facto de ambos terem sido estudantes na Sorbonne, o primeiro de Filosofia, a seguir o curso, como dizia, “se não com proveito, com assiduidade exemplar”, o segundo de Direito, brevemente e sem convicção: “Em suma, não creio em mim, nem no meu curso, nem no meu futuro.” (carta a Fernando Pessoa, 16 de Novembro de 1912). Não sendo desejável forçar a nota de circunstâncias que poderiam ter propiciado eventuais cruzamentos, convém ainda lembrar, contudo, que tanto Aquilino como Sá-Carneiro foram, a partir de Paris e em períodos nalguns casos coincidentes, colaboradores da Ilustração Portuguesa, o último encarando com auto-ironia o seu contributo numa revista sem tonalidades modernas em questões de arte (cf. cartas a Pessoa datadas de 10 de Março de 1913, 29 de Outubro, 10 de Novembro, 12 e 24 de Dezembro de 1915).

Apesar dos factos aqui mencionados, o mais provável é que os dois escritores não se tenham encontrado, pelo menos de forma que justificasse qualquer menção por parte de um ou de outro. Se considerarmos dados puramente circunstanciais, resulta evidente que em Paris ambos frequentavam círculos directamente incomunicáveis, pois Aquilino vivia no meio de exilados republicanos, políticos e artistas, que o autor de A Confissão de Lúcio execrava. Se considerarmos, por outro lado, questões avulsas, mas afins, como influências, cânone literário pessoal, distinção valorativa entre poesia e prosa romanesca, pensamento estético e, aqui, relação da criação literária com a vanguarda, podemos encontrar um mundo a separar Sá-Carneiro, Pessoa e Aquilino; quer dizer, um mundo a separar o Modernismo que os primeiros vertem em obra e doutrina e o espantoso sincretismo de tradição multissecular e contemporaneidade que o segundo pratica, sempre distanciado dos “ismos” programáticos que atravessou durante a sua vida de escritor, embora nem sempre imune a influências. É o caso do esteticismo finissecular, um ponto de intersecção não declinável entre textos de Sá-Carneiro e alguns contos de Jardim das Tormentas, livro de estreia de Aquilino Ribeiro (1913; cf. “A Catedral de Córdova”, “A Inversão Sentimental”, “A Tentação do Sátiro” e “Triunfal). Ecos da estação parisiense? É essa a crença de Óscar Lopes, ao afirmar que “o épico em prosa da beira serrana não deve menos que os órficos ao seu estágio parisino” (Cifras do Tempo, Lisboa, Caminho, 1990, p. 201).

Curiosamente, um ensaio de Dieter Woll lança a hipótese de uma crónica de Aquilino Ribeiro sobre uma exposição de pintura futurista (Ilustração Portuguesa, 116, 11 de Março de 1912) ter sido a porta através da qual o futurismo “deu a sua primeira entrada na literatura portuguesa”, reflectindo-se no conto “Mistério”, de Sá-Carneiro (redigido em 1913 e publicado em 1915), e também no poema “Manucure”. Afinidades temáticas e figurativas entre os dois textos, bem como circunstâncias externas (uma delas, justamente, a da colaboração do poeta na revista onde o artigo foi publicado), constituem dados probatórios de uma hipótese que o ensaísta alemão alarga estabelecendo também paralelismos entre a referida crónica e os poemas de “Chuva oblíqua”. Essas afinidades, no que se refere à sua possível genealogia, são, no entanto, contestadas por Alfredo Margarido, que contrapõe a possibilidade de “as novas opções estéticas”− entre estas, o cubismo, que considera ser o primitivo ângulo de “iniciação à modernidade” na geração do Orpheu −  terem chegado a Sá-Carneiro  pelo convívio, ainda em Paris, com Santa-Rita. Possibilidade, por sua vez, merecedora de réplica num segundo artigo de Dieter Woll, que recupera em boa parte o ensaio inicial e debate o cepticismo de Alfredo Margarido quanto ao papel do texto de Aquilino na cisão modernista em Portugal.

Perante estas divergências, não há como não voltar tanto à proximidade geracional entre os três escritores como à significativa inexistência de pontos de contacto, lato sensu, um dado importante para ajuizar sobre o panorama literário português aquando da afirmação do Modernismo. Factos há muito poucos, sendo de assinalar, enquanto dados concretos: uma referência sumaríssima ao autor de Terras do Demo numa carta de Sá-Carneiro para Pessoa – “Não vi o livro do Aquilino” (10 de Maio de 1913) –, seguramente como resposta a uma referência do segundo a Jardim das Tormentas; várias referências ao mesmo em quatro cartas de Fernando Pessoa a Adriano del Valle, sendo a mais significativa a de14 de Setembro de 1923, onde o poeta avalia o seu contemporâneo como “grande prosador” a propósito do livro de estreia e de Filhas de Babilónia (1920). Para além das hipóteses resta, portanto, a certeza de que Aquilino teve Pessoa como leitor.

 

BIBLIOGRAFIA

 

MARGARIDO, Alfredo, “A complexa relação de Mário de Sá-Carneiro com o cubismo”, Colóquio/Artes, 82, Setembro de 1989, pp. 32-41.

 

PESSOA, Fernando, Correspondência, 2 vols, edição de Manuela Parreira da Silva, Lisboa, Assírio & Alvim, 1998-1999.

 

SÁ-CARNEIRO, Mário de, Correspondência com Fernando Pessoa, I e II, edição de Tersa Sobral Cunha, Lisboa, Relógio D´Água, 2003.

 

WOLL, Dieter, “Aquilino Ribeiro, a pintura futurista italiana e a literatura de Orpheu”, Aufsätze zur Portugiesischen Kulturgeschichte, 16, 1980, pp. 83-99.

 

WOLL, Dieter, “Sá-Carneiro, Aquilino Ribeiro e o futurismo”, in AA.VV, Mário de Sá-Carneiro. 1890-1916, Biblioteca Nacional, Lisboa, 1990, pp. 31-46.

 

 

Serafina Martins